Um Conto Chinês

Por João Paulo Barreto

Um conto chinês começa surreal. Na sua primeira cena, em um vilarejo chinês, o que vemos na tela é algo tragicômico que nos parece que será o tom para o que veremos nos próximos 90 minutos de filme. No entanto, após aquele choque inicial, a obra, literalmente, vira de ponta à cabeça, seguindo para outro extremo narrativo (e geográfico) através da análise comportamental de um personagem fascinante: o comerciante de Buenos Aires, Roberto (Ricardo Darin).

Roberto é um ser humano metódico. Escravo de uma rotina que nada parece abalar, ele dorme pontualmente às 23h, come sempre a mesma coisa no café da manhã, conta o número de parafusos contidos nas caixas que ele compra para revender em sua loja de ferragens (algo que sempre o revolta, uma vez que o número é sempre menor que o do rótulo) e tem o hábito de colecionar coisas. Desde miniaturas de pássaros que usa para presentear sua falecida mãe até notícias incomuns publicadas em jornais do mundo.

Na tentativa de manter aquele seu frágil mundo em ordem, ele procura repelir qualquer tipo de situação ou pessoa que tente mudar a sua ideia de rotina. É perceptível seu modo conservador de agir (“Se só vou usá-lo uma vez por ano, posso usar o seu”, replica a um amigo quando arguido da razão de não ter um computador) e, ao mesmo tempo, ele se incomoda com sua inércia a ponto de sempre se incluir nas suas encenações mentais sobre as notícias bizarras que coleciona, numa vã tentativa de escapar da sua própria prisão.

Quando se vê como anfitrião involuntário do chinês Jun até que esse consiga localizar seus parentes na argentina, seu perfil metódico começa a declinar. Solitário por opção, Roberto passa a ser obrigado a dividir aquele seu universo com outra pessoa que, ironicamente, não consegue entender uma palavra do que ele diz. Há, também, a bela Mari (Muriel Santa Ana) que, apaixonada pelo comerciante, tenta derrubar as paredes que este construiu em volta de si.

Conseguindo equilibrar de modo primoroso um drama delicado com uma sutil comédia de costumes, o filme de Sebastian Borensztein é capaz de levar o espectador à emoção sem muito apelo dramático. Muitas vezes, não é preciso nem que entendamos os diálogos. Basta observar a cena quando Jun recebe um surpreendente telefonema. A emotividade é um sentimento de cunho universal e o embargar da voz do personagem já é suficiente para entendermos o que se passava naquela conversa.

Interpretado de forma cativante por Ignácio Huang (que nasceu na China, mas vive na Argentina desde os onze anos de idade), Jun consegue contrapor com sutileza e doçura todo o comportamento amargo de Roberto. Huang, de modo perspicaz, usa o olhar de Jun para transmitir suas angustias e percepções. E quando percebemos o sorriso dele ao notar que o amor de Mari por Roberto é tão aparente que apenas este não consegue abraçá-lo, concluí-se que não são necessárias palavras para se dizer certas coisas.

Mari representa para Roberto uma fuga daquele mundo de minúcias inúteis que só o atrasam. Preso naqueles cômodos, o comerciantes parece valorizar, apenas, seus objetos. A competente direção de arte cumpre bem o papel de demonstrar aquele imóvel como um local frágil, repleto de coisas também frágeis que compõem a vida daquele homem. Quando Jun, em um acidente, destrói uma importante peça afetiva de Roberto, não é apenas uma parte de seu tesouro particular que se quebra, mas, também, um pouco daquele escudo anti-social que o homem mantém em sua volta.

No momento em que uma coincidência incrível é revelada, percebemos, junto com Roberto, que a sua solidão voluntária já não é mais necessária. Nenhum homem é uma ilha, já disse a frase clichê. Curiosamente, a trajetória do argentino me lembrou uma frase proferida por um jovem que também optou pela natureza eremita. Em certo momento, quando tudo estava perdido, ele disse que a felicidade só era possível se compartilhada. Felizmente, Roberto percebeu isso antes que fosse tarde demais.