Transeunte

Por João Paulo Barreto

Aos trinta anos, órfão de pai, me sinto velho. Não somente por já ter enterrado (no caso, cremado) aquele que me colocou nesse mundo, mas, também, por sentir, às vezes, que já tive experiências por demais desgastantes para (apenas) três décadas de vida. No entanto, nenhuma dessas experiências te faz pensar mais sobre seu tempo no mundo e o quão importante é saber aproveitá-lo quanto ver algum ente querido tão próximo a você partir de forma incrivelmente precoce. Mas essas sensações devem ser encaradas como fases. Coisas a serem superadas. A vida está aí para se aproveitada. Clichê dizer isso, mas a vida é para ser vivida. E bem. A partir do momento em que se percebe o presente que é estar vivo e saudável, nota-se que nada é banal. É justamente essa percepção que eu tenho, que Expedito Silva Soares teve. A de que a sua vida deve ser encarada como uma experiência gratificante.

Assim como eu, Expedito perdeu um dos seus pais recentemente. Há pouco mais de dois anos, sua mãe, Metilene, faleceu aos 81 anos. Mesmo tendo passado dos sessenta na companhia dela, Expedito sente sua falta. Solteiro convicto, ele nunca se casou ou teve filhos. Apesar de não testemunharmos, percebe-se que ele teve um contato intenso com a mãe. Seu apartamento, no centro do Rio, em um edifício de pouca privacidade, onde seus passos pelo corredor e sua entrada em casa são vigiados por vizinhos atentos, é repleto de fotos com a falecida senhora. Expedito ficou preso a um passado que a morte ainda não foi suficiente para fazê-lo superar.

O filme de Eryk Rocha é um exercício de contemplação. Desde sua cena inicial, onde a tristeza de um dia de finados, no cemitério da capital fluminense, contrasta lágrimas e olhares tristes com o som de crianças correndo e de música instrumental tocada ao vivo, a obra nos convida a observar cada frame, cada seqüencia, com atenção, nos fazendo perceber a ascensão emocional de Expedito de forma gradativa.

Transeunte não possui diálogos até quase vinte minutos de projeção, quando ouvimos o protagonista se apresentar. A escolha de inserir o espectador no universo daquela pessoa através do silêncio e dos sons diegéticos (aqueles naturais do ambiente onde se passa a narrativa) da película não poderia ter sido mais feliz. Observamos cada passo do personagem. Conhecemos sua expressão indiferente para com as ruas da cidade e nos acostumamos com ela. Os sons da metrópole chamam sua atenção e, por conseqüência, a nossa. A partir do momento em que ele começa a mudar o modo melancólico de encarar a rotina, é que percebemos o potencial que aquele homem ainda tem em sua vida.

Expedito concentra seus dias em ações simples, como a marcação dos horários do seu remédio diário, algo que demonstra que a sua fragilidade pode ser associada, diretamente, ao emocional. Seu apartamento ilustra bem como anda sua vida. Sem cores, tons pastéis, a única coisa que aparenta certo calor naquele ambiente é o símbolo do Flamengo, time para o qual ele torce e parece ser a única coisa a captar, realmente, sua atenção. A opção de filmar em preto e branco e com um granulado notável na película, demonstra-se acertada por Rocha, já que a imagem, dessa forma, consegue transmitir a aparência do mundo particular do protagonista. A fotografia de Miguel Vassy apresenta aquele universo deprimente da vida de Expedito de um modo que nos cativa, uma vez que a identificação com aquele homem silencioso, que toma seu café da manhã sozinho e parece, pelo travesseiro no sofá, ter passado a noite ali mesmo, é plena justamente por o conhecermos em seu dia a dia.

Repleto de planos detalhes que convidam o espectador a se aproximar cada vez mais da vida do personagem, o filme nos coloca junto com Expedito em sua rotina monótona e voyerista. O aposentado vaga pela cidade a observar cada detalhe das pessoas que cruzam seu caminho. Uma mensagem romântica sendo digitada no celular da adolescente sentada ao seu lado no ônibus, a discussão de um casal por conta de problemas com a sogra, nada se perde ao olhar atento e reflexivo de Expedito.

A câmera de Rocha passeia pela cidade, mostrando outros transeuntes em suas vidas e afazeres. Em uma metáfora eficiente, por exemplo, Expedito observa a construção de um novo condomínio em frete ao prédio onde mora. É o sinal da mudança. Da readaptação para ele. Ao ouvir a pergunta da sobrinha sobre se a obra faz muito barulho, ele diz que não. Mas esse barulho vai crescendo, assim como aquela vontade de evoluir que brota e incomoda em sua consciência.

No entanto, sua vida ainda não possui um norte. E ele parece saber disso. Uma inércia o mantém condicionado àquela realidade pobre, sem ambições. Preso a um passado onde entes queridos compunham sua rotina, Expedito não evolui. Duas coisas acontecem para ele, finalmente, começar a superar seu estado de prisão. Um, seu aniversário chega. Dois, a música invade sua vida. Com um bolo simples de padaria, ele sopra velinhas na companhia de sua sobrinha, que o visita com um livro de fotos sobre futebol de presente. Aquele parece ser um momento de revelação. Ao se despedir da garota, ele sai para mais uma caminhada e percebe-se em meio a uma seresta. É naquele momento que o primeiro sorriso verdadeiro de Expedito é esboçado. E da forma como ele contempla o bolo de aniversário de uma das presentes na festa, um bolo tão diferente da simplicidade do seu, percebe-se que ele começou a dar os primeiros passos.

Sua mudança é tocante. Antes despreocupado com a aparência, agora começa a se olhar mais no espelho, ir ao cabeleireiro (a pergunta do profissional revela que sua ausência daquele local é evidente). Sua alegria demonstrada no Maracanã, ao ver o gol do seu time, comprova que aquele homem ainda pode superar os traumas que a perda o impôs.

A música é o ponto de apoio principal para Expedito. Suas visitas à seresta se tornam corriqueiras. A partir delas, até sua vida sexual muda. E o modo como o filme apresenta a alegria daquele lugar é de uma ternura ímpar. A opção por mostrar as músicas em longos trechos cantados pelos personagens (na verdade, os próprios freqüentadores do lugar) capta uma emoção para aquelas cenas que contagia não somente o protagonista, como, também, o espectador.

Mas a melancolia da perda ainda se faz presente. A contemplação do mar por Expedito, no momento logo após retirar os restos mortais da mãe do cemitério é a prova disso. E o diretor utiliza desses momentos de reflexão sem pressa, o que traz para a narrativa um olhar ainda mais tenro do estado de superação pelo qual Expedito passa. Com isso, a forma calma como o roteiro de Manuela Dias e do próprio Rocha demonstra a evolução dele torna-se ainda mais natural.

Em um longa onde a cidade do Rio de Janeiro parece não possuir toda a beleza que conhecemos, é quase como se ela tivesse sido tocada pela tristeza da vida do protagonista. E se, em uma clara homenagem a Glauber, pai de Erick Rocha, vemos um pregador de rua (o compositor Lirinha, em um papel ideal) gritar para Expedito que “nós vamos te amar do jeito que você é”, é por que aquele homem já pode ter a percepção de que superou seus fantasmas. Só depende dele.

A câmera se afastando do homem nos momentos finais o mostra independente para caminhar, finalmente, seus próprios passos.