Por João Paulo Barreto
Há uma discussão válida em Shame, filme estrelado pelo excelente Michael Fassbender, que martela a mente durante boa parte da projeção do longa: o comportamento de seu protagonista é, realmente, condenável? Um cara que opta por viver em busca de prazer sexual em uma vida que o filme tenta exibir como vazia por essa razão, é uma pessoa que pode ser classificada como superficial? (ou, um dos adjetivos mais imbecis que ouvi ao sair da sala, “pobre de espírito”? Ah, os religiosos…). Desculpem os puritanos que arriscaram a sessão, mas a resposta é não.
Ok, o roteiro escrito pela inglesa Abi Morgan (do vergonhoso A Dama de Ferro) em parceria com o diretor Steve McQueen tenta provar durante o arco final da projeção que a vida escolhida pelo executivo Brandon Sullivan não é digna. No entanto, a reflexão que o filme traz é bem mais profunda do que apenas o ato de julgar e condenar uma pessoa por suas escolhas de vida, que, no final, só dirão respeito a ela mesma.
Shame começa apresentando a rotina de Brandon, pintando-o como um viril amante e um cara tão viciado em sexo que é capaz de se masturbar apenas algumas horas depois de transar. Explorando sem pudores a nudez de Fassbender, o diretor McQueen a utiliza não de forma gratuita, mas, sim, como um reflexo do modo como o universo do protagonista deve ser conhecido pelo espectador. Individualista e solitário por opção, Brandon evita atender os constantes telefonemas de uma mulher que, em seguida, descobriremos se tratar de sua irmã caçula, Sissy (Mulligan), uma cantora de bar com um histórico de vida um tanto traumático.
A relação dele com Sissy é definidora para o entendimento da personalidade atormentada de Brandon. Escondendo-se atrás de uma fachada de sofisticação cujo perfil de rotina e trabalho denotam isso de forma ideal pelo filme, Sullivan se esforça para não demonstrar emoções profundas de afeto, mantendo suas relações sempre no âmbito do superficial, sejam com colegas de emprego, mulheres com quem mantém um caso ou a própria irmã. Talvez por isso seja surpreendente a reação que o vemos ter ao assistir uma apresentação da irmã em um bar (Carey Mulligan arrasando em uma versão de New York New York).
O diretor Steve McQueen utiliza planos fixos, sem cortes, em diversos diálogos, os quais, dessa forma, tendem a demonstrar todo o manejo do protagonista em lidar com incisivas tentativas de desvendá-lo. O mais interessante deles é quando o vemos em um jantar com uma colega de trabalho: mantendo a imagem durante longos minutos apenas na conversa dos dois, é perceptível o modo como Brandon tende a se esquivar das perguntas que a bela garota lhe faz, principalmente quando estas tratam do modo como ele foge de relacionamentos mais profundos que apenas uma transa casual.
Mantendo sempre um tom de voz baixo e controlado, Fassbender constrói um personagem fascinante que, gradativamente, vai perdendo o controle de suas ações ao perceber seu mundo violado. A começar por sua irmã (o momento onde o vemos explodir surpreende justamente por estarmos acostumados a vê-lo sempre sereno), que insiste em viver com ele sob a alegação forçada de que eles são uma família. A longa cena onde ambos são enquadrados de perfil enquanto conversam em uma delicada atmosfera que tende a se tornar agressiva a qualquer momento, reflete bem o estudo de personagem proposto pelo longa.
Uma pena que o filme tenda ao conservadorismo colocando Brandon em um conflito interno no qual sua vida passa a ser avaliada e condenada por ele. A cena onde o vemos jogar no lixo revistas pornográficas e um laptop (!!) reflete bem essa ideia do roteiro, a de que o seu perfil de vida merece ser condenado e modificado. E é por isso que os momentos onde o vemos perder o controle e cair em uma descontrolada busca por sexo soe, justamente, como uma forma da história o colocar em uma condição (forçada) que requer uma mudança urgente.
E todo o falso moralismo centrado na cena final, onde a visão de uma aliança de casamento reflete o conflito interno pelo qual passa o personagem, apenas corrobora a tentativa do roteiro em separar comportamentos certos e errados.