Por João Paulo Barreto

Existem semelhanças entre a figura de Raul Seixas como pessoa e como artista com a de Raul – O inicio, o fim e o meio, documentário. Sim, ambos, tanto o longa dirigido por Walter Carvalho quanto a mítica presença do cantor, causam um total impacto em seus ouvintes e espectadores que, ao final, quando percebemos que aquele é um Raul construído pela visão de uma outra pessoa, fica difícil desvirtuá-los.

O esmero que o filme teve em estruturar a trajetória do maluco beleza é notório. Desde a sua infância pretensamente rebelde, com o cabelo pompom à la Elvis Presley (primeiro ídolo de Raul), os vícios precoces em cigarros e bebidas, a sua gênese artística com Os Panteras, passando pela ida ao Rio de Janeiro para tentar a vida, o sucesso, as mulheres, os filhos, o flerte com o misticismo de Aleister Crowley, a parceria com Paulo Coelho, as drogas, o exílio político, chegando, infelizmente, no declínio da saúde, o vício em éter e, por fim, a morte. Cada fase da curta vida do baiano roqueiro é trabalhada através de depoimentos da maioria dos envolvidos.

Iniciando com imagens de Elvis em Balada Sangrenta (King Creole), filme de 1958 que Raul assistiu inúmeras vezes durante a infância e adolescência, e contextualizando de forma bastante eficaz com os beatniks de Easy Ryder- Sem Destino, o documentário viaja em diversas fases de Raul através de uma óptica por vezes cronológica e por vezes aleatória. Nada mais a ver com a personalidade metamórfica do roqueiro do que isso. Mas, claro, o longa acaba por seguir uma estrutura linear na maior parte do tempo, tendo como padrão o conceito de talking heads. No entanto, isso não chega a incomodar, uma vez que cada personagem em cada depoimento ajuda a compor o mito de modo elucidativo.

Os depoimentos são um caso à parte. Os melhores ficam por conta dos parceiros compositores Paulo Coelho e Cláudio Roberto. Este último, compositor de Maluco Beleza, um dos sucessos que Coelho diz em depoimento que queria ter escrito. A já clássica cena em que uma mosca interrompe a entrevista do escritor em sua casa em Genebra, na Suiça, local onde normalmente não há moscas, figura entre uma das melhores do longa. Outros pontos observados com extrema perspicácia são os relacionados à fase em que Raul e Paulo Coelho estiveram envolvidos com seitas satânicas, influenciados pelo mago Aleister Crowley, fase que, surpreendentemente, o escritor descreve como período negro de sua vida e, ao falar sobre ele, percebe-se uma clara sensação de arrependimento.

Utilizando entrevistas de Raul em cada fase de sua vida, é com tristeza que se nota como a imagem do ídolo se deteriorou com o passar de poucos anos. Se jovem o vemos no palco com um corpo esbelto onde desenha a cruz ansata em seu peito, em uma das suas últimas imagens já o vemos chegar no aeroporto de Salvador, junto ao músico Marcelo Nova, com um perceptível desequilíbrio e dificuldades gerados por seus vícios. Nova, inclusive, traz outro depoimento impactante ao falar sobre o fato de tê-lo trazido de volta do ostracismo e, por isso, ter sido acusado de aproveitador. A resposta do vocalista do Camisa de Vênus encerra bem essa polêmica: “Ele morreu de pé, cantando, no palco, da forma que tanto amava, e não sofrendo em uma cama de hospital, no esquecimento”.

Walter Carvalho optou por um eficiente modo de mesclar as opiniões de cada uma das fontes, gerando uma narrativa onde o diálogo criado entre elas colabora com a fluidez do documentário. Por exemplo, a evolução da história com as falas de cada uma das mulheres da vida de Raul acaba por nos trazer fatos que, quando costurados a partir da imagem delas sobre o cantor e sobre suas relações com ele, enriquece a descoberta da vida intima do ídolo. O impacto emocional da leitura das cartas que Raulzito enviou para suas filhas, de quem acabou se afastando de forma dolorosa por conta da falta de apreço pela própria saúde ou pelas taxas que a fama lhe cobrou, é de puro esclarecimento sobre a figura paterna que existia por trás daquela fachada de metamorfose ambulante.

E não só esse momento nos faz refletir sobre como Raul chegou a uma fase de sua vida onde, fatalmente, lhe veio à mente um reflexão tardia sobre seus próprio atos suicidas. Em certo momento, o filme nos apresenta ao dentista que cuidou da boca do astro quando suas condições já estavam precárias. Triste vê-lo dizer que Raulzito teve sua autoestima renovada após o tratamento bucal. Triste pelo simples fato de que sua condição de saúde não o permitiria mais continuar.

E desse modo, Raul – O inicio, o fim e o meio nos ajuda a conhecer aquele cara que descobriu tarde demais os próprios limites. O som dos gritos da multidão que compareceu ao enterro do homem e o trecho de Ouro de Tolo no qual ele canta “eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boa escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar”, encerra a vida de Raul através de um simbolismo único, tão único quanto o mito ali esmiuçado.