
Pacific
Por Rafael Saraiva
Pacific, nome do navio que dá título ao documentário, mais que transportar pessoas, transporta ilusões. Embora estejam se popularizando, cruzeiros ainda são comumente associados ao luxo, status e glamour, e por isso carregam consigo simbolismos que vão muito além dos de uma simples viagem: há o ideal da realização pessoal, do descanso merecido e da recompensa após anos de trabalho. E é justamente sobre esse imaginário coletivo que cada aspecto do cruzeiro é trabalhado, para vender esse sonho que ecoa por todos os cantos da embarcação, e por fim, em seu destino final, a ilha de Fernando de Noronha, paraíso para poucos.
Afastado do resto da humanidade por centenas de milhas náuticas, o Pacific funciona como uma espécie de microcosmo – uma simulação da vida “perfeita”, composta apenas por diversão e conforto. Mas todo esse descanso está disponível apenas para aqueles que pagaram o preço da viagem. Para que esse universo funcione de modo autossuficiente, tem que existir também um verdadeiro exército de funcionários sempre a postos (praticamente) 24 horas por dia para servir e entreter em festas, shows, espetáculos, atividades recreativas, bares e restaurantes. E o filme acerta no modo como evidencia a relação entre passageiros e tripulação – nunca descambando para o tom de denúncia, mas sempre de modo bem sutil deixando claro a hierarquia e subserviência que impera naquele ambiente.
E em terra firme a situação não é muito diferente. A ambientação artificial é trocada pela natural, é verdade, mas a dinâmica continua a mesma. Fernando de Noronha serve como um grande parque de diversões privativo para os visitantes que, por um ou dois dias, tem a chance de explorá-la. E se no navio todos se reuniam para assistir a versões tupiniquins de musicais como O Fantasma da Ópera, em terra firme o palco se torna a praia, e o show, a corrida das tartarugas recém-nascidas até o mar (momento esse que é oportunamente pontuado na montagem por uma intervenção da apresentação do mestre de cerimônias das apresentações).
Mas a maior qualidade de Pacific é ser um relato extremamente sincero dessa semana de “glória” vivida pelos passageiros. E para que funcionasse, foi essencial a abordagem escolhida (e explicada logo no início da película) pelos realizadores: o documentário foi feito a partir de registros pessoais em vídeo fornecidos, posteriormente, pelos próprios passageiros, com um trabalho de montagem digno de reconhecimento, capaz de estruturar uma linha narrativa única a partir de materiais com pontos de vistas tão distintos. E é louvável que as pessoas tenham disponibilizado essas imagens, compartilhando momentos íntimos com o público. O que está ali é a pura “espontaneidade” (entre aspas mesmo – e é curioso ver como diversas referências audiovisuais, como a de Titanic, são assimiladas aos registros) das suas gravações caseiras. É interessante também o fato de muito pouco ser mostrado sobre a vida cotidiana daquelas pessoas: não é explicitado quem elas são no dia-a-dia, se são médicos, engenheiros, aposentados. É um recorte tão somente da existência delas ali no cruzeiro, evitando julgamentos prévios – e por isso, a cena no aeroporto de Porto Alegre bem no começo do filme destoa do conjunto, se mostrando desnecessária.
Por tudo que oferece, é uma pena que Pacific termine tão prematuramente, encerrando-se logo após a despedida de Fernando de Noronha. Embora isso coloque os momentos na ilha como o clímax (o que faz sentido do ponto de vista estrutural da narrativa), o filme deixa uma impressão muito forte dos momentos de clausura no navio, de como a vida transcorre naquele ambiente artificial (até pelo fato do tempo gasto em trânsito ser muito maior do que a estadia na ilha). Por isso, a viagem de volta ao continente poderia reservar a descompressão dessa ilusão em que todos estavam vivendo, servindo de contraponto muito interessante ao clima do seu início. Mas essa vontade de querer assistir mais também reflete ainda mais a eficácia e as qualidades deste ótimo documentário.
PS: Recentemente, o filme foi disponibilizado, na íntegra, para download em seu site oficial. O endereço é: http://www.pacificfilme.com/