Os Residentes

Por Ramon Coutinho

Na saída da sessão de Os residentes fui surpreendido por uma senhora com uma pergunta extremamente complexa depois daquelas imagens: “Você gostou?”. Minha expressão confusa certamente se embolou com algumas palavras que não me recordo bem como foram entendidas por ela. Eu, um casal – que conversou boa parte do tempo – e ela, duas fileiras à frente, fomos os únicos que resistimos até o fim, acompanhando o abandono sistemático das pessoas durante todo o filme. Essa atitude acaba revelando uma dupla questão: a óbvia intolerância generalizada, com narrativas e propostas que fogem do cinema habitual, convencionado nos mesmo esquemas confortáveis na relação filme-espectador; e contraditoriamente revela também a própria força do filme, afinal Os Residentes exige uma tomada de posição, mesmo que baseada no incômodo, mesmo que contra ele mesmo. Assim como seus personagens, é quase impossível sairmos ilesos.

A leitura pós-filme da sinopse pareceu ainda um bom exercício pra entender a tentativa de mostrar a película de um modo simples e resumido. “Instalados em uma nova zona autônoma temporária, os residentes passam os seus dias entre pequenos complôs lunáticos, farsas quixotescas e delírios rimbaudianos.” Diante dessas pretensões e entre cada delírio que o filme propõe, outros vão surgindo, como se dessa orgia imagética chegássemos ao que a narrativa fragmentada à nossa frente parece querer construir com uma sucessão e alternância de cores, sons, contrastes, silêncios e monólogos. Nos aproximamos sem saber ao certo o que virá adiante, aderindo a algumas sequências, entortando o nariz pra outras, fazendo dessa variação e risco, elemento potencializador de uma arte que pretende ir além dela mesma. É a tentativa de enxergar esse limiar e ultrapassá-lo, que faz do discurso estético do filme uma oposição clara ao que se pratica para além dessa zona autônoma. Ali os personagens se mostram despidos, contraditórios, mas juntos e cientes da vontade de não aceitar “um mundo utilitário e sem poesia”. As roupas penduradas na parede pontuam parte desse desnudamento, que todo tempo buscará extrair de um descobrimento insistente que os irrompa do imobilismo – a mulher que emerge das pedras, que desata o nó das cordas – para que daí, libertos, possam se apropriar das armas (invisíveis ou não) que lhes caibam melhor.

A lógica de concatenar ideias com clareza desaba como os livros que tentam ser empilhados, que com toda sua coerência e sentido servem de papel higiênico aos que não acreditam na palavra sem a carne, na razão sem o pó. O jogo de palavras (mito – motim/ estética – ética) rodeia os personagens como se cutucando e provocando suas intenções, necessidades políticas transgressoras. O filme se desarruma como se vindo da confusão da memória, do caos dos sonhos, das discussões de relação sem fim, mas que servem ao movimento, mesmo que ele tarde a chegar. Quanto mais voltas o filme dá sobre o mesmo círculo – o homem na bicicleta, o caminhão de areia – mais ele assume a necessidade da queda como processo de rompimento e mudança de atitude. A beleza de uma discussão, dos olhos em lágrimas, a latência dos corpos, da união das pequenas forças, tudo é conduzido a favor de uma expansão fora das leis de mercado, de consumo, de cinismo e banalidade comportamental.

Daí, de tanto friccionar suas próprias amarras, duvidando e acreditando de si, Os Residentes proporciona uma demolição inevitável do olhar, escapando de seu aparente hermetismo pra uma anarquia aberta e carnavalesca, seguindo assim pra outros espaços – rua, floresta – onde a luta parece a única necessidade transcendente. Terminar o filme é partir para esse momento renovador, que exige posição, principalmente em uma sala vazia, denunciando o lugar por onde o cinema – e o resto das coisas – parece querer empacar.