Por Rafael Carvalho

O mais interessante em acompanhar os movimentos dos irmãos Dardenne em cada novo filme é perceber certas mudanças narrativas sutilmente acrescentadas, mesmo que mínimas, embora temas preferidos e marca autoral tenham presença inequívoca em todos os seus filmes (assim como também o faz Pedro Almodóvar em seu novo trabalho). Câmera na mão perseguindo os personagens, planos longos, atuações naturalistas, sem exageros, e questões como paternidade e delinquência estão sempre em evidência em seus filmes.

Pode-se dizer que A Criança (2005) se diferencia um pouco de Rosetta (1999) e O Filho (2002) por trazer uma planificação mais aberta, com a câmera menos colada nos personagens; e O Silêncio de Lorna (2008) aponta para um certo psicologismo pouco visto nos filmes anteriores. Já em O Garoto de Bicicleta há um tom mais emocional, menos denso e frio, apesar da dureza e dos perigos que ainda cercam a trajetória de seu protagonista.

Cyril (Thomas Doret) é um garoto que vive num internato depois de ter sido abandonado pelo pai. Mas ele não descansa enquanto não se encontrar com a figura paterna, pois é com ele que quer ficar. Nesse processo de busca, ele vai se agarrar (literalmente) à cabeleireira Samantha (Cécile de France) que irá ajudá-lo, num contraponto bastante interessante.

Se o pai o renega (e existe uma cena bastante dura nesse sentido), Samantha surge como possibilidade materna de proteção, muito embora Cyril, raivoso e determinado, na maior parte das vezes irritantemente descontrolado e intransigente (como uma Rosetta versão infantil), vai fazer de tudo para reconquistar o pai. E é muito interessante como o garoto nutre uma enorme confiança nesse homem inconsequente, tentando desconsiderar qualquer tipo de atitude que o condene como má pessoa e influência.

A questão da paternidade aparece aqui mais uma vez em evidência, e é muito pertinente que essa figura seja interpretada pelo ator Jérémie Renier, parecendo reprisar seu papel de pai irresponsável que vende o filho recém-nascido em A Criança. Sua rejeição ao filho vai estar diretamente ligada à ideia de marginalidade, uma vez que a aproximação de Cyril com outros garotos inconsequentes nas ruas parece lhe possibilitar outros modos de acolhimento, inclusive de forma a ajudá-lo a se reaproximar do pai. Essa marginalidade representa, assim, uma provável “família”, uma perigosa rota de saída que o filme ensaia para Cyril.

Os Dardenne costuram seu roteiro perpassando por esses caminhos de possibilidades pelas quais Cyril cruza em sua busca. Existe uma segurança muito perceptível nessa condução (fazendo jus ao Grande Prêmio do Júri conquistado no último Festival de Cannes), embora haja alguns riscos pelo caminho.

O maior deles talvez seja a aproximação entre Cyril e Samantha que começa da forma mais inusitada possível e cresce no decorrer do filme. Da parte de Cyril é bastante compreensível a necessidade de alguém que o acolha, mas é possível questionar o que realmente motiva Samantha a ajudar aquele garoto problema. Às vezes parece difícil acreditar nessa relação. Mas ao invés de esconder esse detalhe, os Dardenne o expõem quando o garoto pergunta à mulher por que ela o está ajudando. Ela não tem resposta, deixando em aberto essa sua vontade de ser útil, de abrigá-lo. O maior desafio do filme é fazer crer nessa relação, e aí a atuação sem exageros, mas segura de Cécile de France é fundamental para enxergarmos na mulher essa determinação (e vale destacar que essa é um das primeiras vezes que os diretores trabalham com uma atriz mais conhecida do grande público, o que já causa empatia imediata).

O filme vai guardar para os minutos finais um embate com resultados quase trágicos, mas que aponta para certa mudança no caráter desse garoto. São os Dardenne, numa perspectiva talvez inédita em seus filmes, nos dizendo que ainda há esperança. O Garoto de Bicicleta talvez não tenha a mesma força que os demais filmes dos irmãos belgas. Apesar da crueza habitual que ronda seus personagens, o filme dá um passo à frente rumo a uma direção um pouco mais redentora, e por isso mesmo bonita de presenciar dentro da filmografia desses grandes cineastas.