Por Rafael Carvalho
A Trilogia Millennium, escrita pelo sueco Stieg Larsson, rendeu em seu país natal a adaptação para os cinemas de exatos três filmes. Pois o relativo sucesso do primeiro deles, Os Homens que Não Amavam as Mulheres, já fez Hollywood salivar por uma refilmagem, que acabou caindo nas mãos de David Fincher. Apesar de contrário a esse tipo de remake, principalmente quando a obra original data de tão pouco tempo (2009), não posso deixar de aprovar o ritmo e o tom mais pesado que Fincher conferiu ao longa, muito embora esses quesitos soam como artifícios para esconder as fragilidades da própria história.
Para quem amadureceu sua visão de cinema (deixando de lado as firulas com a câmera e focando objetivamente em suas narrativas), a partir de Zodíaco, até chegar no objetivo, ágil e certeiro A Rede Social, Fincher parecia o diretor ideal no mainstream norte-americano para adaptar uma história cheia de personagens e situações que precisassem de um conceito forte e preciso para se desenvolver na tela. Levando em consideração o fato da versão sueca ser bem fraca e mal resolvida, era o prato cheio para transformar a investigação sobre o desaparecimento de uma jovem num grande filme.
Mikael Blomkvist (Daniel Craig) é jornalista da revista Millennium contratado por um milionário industrial para tentar desvendar o desaparecimento misterioso de sua sobrinha-neta, há 40 anos, herdeira da fortuna da família. Para tanto, ele contará com a ajuda da hacker Lisbeth Salander (Rooney Mara) para investigar os podres dos membros da família que mais lembra um covil, tantas são as desavenças e intrigas que reinam ali.
Mas o que ganhou ritmo e clima soturno muito pertinentes à história, dona de alguns momentos fortes e controversos, possui também uma defasagem incômoda no roteiro. O desenvolvimento dos fatos continua capenga, em especial a investigação do desaparecimento que parece se apoiar mais em achismos do que necessariamente em dados concretos que levam aos desdobramentos do caso, o que torna tudo muito furado. Além disso, existe uma quantidade de membros da família Vanger que o roteiro não dá conta de desenvolver pelo simples fato de serem muitos personagens, o que tomaria bastante tempo de um filme que já tem suas 2 horas e meia de duração.
É interessante lembrar que Fincher já carrega no currículo outros filmes de investigação criminal, o que lhe dá certa familiaridade com o tema, tais como Seven – Os Sete Crimes Capitais ou o mais recente Zodíaco,exemplar de narrativa limpa e objetiva (o que mais faz falta nesse novo filme). A diferença entre esse novo projeto e os anteriores é que Millennium precisa ainda lidar com outros centros narrativos, como a acusação de difamação que recai sobre Mikael por ter publicado reportagem difamatória sobre gente poderosa (situação que surge no início do filme, desaparece no meio, mas retoma no final, alongando ainda mais o desfecho da obra). Mas a maior distração mesmo recai sobre a construção de uma personagem das mais interessantes e intrigantes: Lisbeth Salander.
A hacker de aparência punk, comportamento gélido e antissocial, carrega passado trágico na família, está ligada a um tutor que a explora sexualmente, mas apresenta um talento excepcional em levantar os mais sigilosos dados e informações sobre uma pessoa. Assim, ela surge como um ímã que prende a atenção em sua persona esquisita ao mesmo tempo que fascinante, desviando muito da atenção do foco principal da história. É como se a personagem merecesse um filme só dela. A composição de Rooney Mara, um dos pontos fortes do filme, faz jus à personalidade forte de Lisbeth, embora algumas vezes pareça presa a uma nota só, sem muitas nuances.
Assim, diante de tantas “distrações”, de tantas frentes narrativas, é esse ritmo ágil conferido pela montagem e pelo texto cortante e seguro (algo que Fincher já havia imprimido em A Rede Social), o responsável para tentar encobrir as deficiências da história. Mesmo assim, há de convir que o filme consegue manter uma atmosfera sombria e carregada, aliado ao ar da gélida Suécia que realça muito bem todo o clima de frieza e tensão entre os personagens, e também das relações que mantém uns com os outros. O que não deixa de ser um perigo quando essa mesma frieza se confunde com a própria narrativa.