Por Rafael Carvalho

Nanni Moretti é um lord. Nesse seu mais novo filme, o diretor-roteirista-ator bate forte na Igreja Católica, nos seus costumes, preceitos e, principalmente, na fé em crise. E essa crise nunca foi tão aparentemente levada na “brincadeira”, isso porque o filme toca nesses pontos com sutileza absurda, perpassando pela comédia ácida e perspicaz da qual o diretor é exímio em fazer, sem precisar ser agressivo. Por isso, o tom da comédia é bastante apropriado para espezinhar os católicos fervorosos. O resultado é um misto inusitado de filme duro e gracioso. Um filme maduro.

Se no seu longínquo A Missa Acabou (1985) Moretti já fazia sinais que acusavam a falência do catolicismo (interpretando ele mesmo um padre em crise na função), aqui sua mira é em algo maior, mais simbólico: o próprio Papa. E nada que ponha mais em cheque a instituição religiosa do que um líder que, ao ser escolhido Pontífice, é acometido por uma crise de pânico que o paralisa diante do poder. Não é recusa, é indecisão sobre capacidade própria de carregar tamanha cruz.

Daí que o filme se aproveita desse mote para alfinetar de várias maneiras aquele universo antes sacro, agora visto ser corroído por dentro. Começa com a religião cedendo lugar para sua antiga rival, a ciência, uma vez que um psicanalista (o próprio Moretti), o melhor de todos da Itália, é chamado às pressas para ajudar o novo Papa (vivido por um soberbo Michel Piccoli, a desolação estampada em seu rosto) a romper o trauma inicial. Quando o Pontífice acaba fugindo do cerco de todos e passa a perambular pela cidade à paisana (ninguém conhece ainda sua identidade), o médico acaba por ter de aplicar seus métodos de análise nos próprios cardeais, desesperados diante de situação tão inóspita que presenciam.

A partir daí, as duas “tramas paralelas” investem em muitos outros exemplos de como a Igreja e seus principais zeladores são revelados em pequenas problematizações. O momento mais marcante é quando os cardeais, reunidos no conclave para escolher o próximo papa, suplicam a Deus para não serem votados. Na verdade, toda a primeira meia hora do filme é soberba na construção de uma ritualidade que todos respeitam, mas que poucos querem que as atenções recaiam sobre si no final.

Depois disso, o longa perde um pouco sua força, talvez por esse início ser todo muito rico da força dramática que desestabiliza as convicções de um grupo de líderes religiosos que deveriam sustentar com afinco uma crença. Mas é como se o filme abraçasse o fake como forma de alcançar esse estado de impossibilidade, ao mesmo tempo em que acredita piamente no nonsense e precisa dele para fazer sua crítica a um certo estado de coisas.

Mesmo assim, o filme continua sua empreitada de cutucadas. Está no choque que o Papa tem no contato com pessoas comuns nas ruas, em especial vendo reavivar sua antiga paixão pelo teatro quando descobre uma trupe que encena Tchekhov (é sintomático o momento em que ele diz ser, na verdade, um ator); mas se encontra também nos cardeais sofrendo de dores de cabeça e jogando vôlei para aplacar as angústias, ou na cena em que o psicanalista, recitando trechos da Bíblia, diz que aquele se trata de um livro depressivo.

Se o absurdo das situações soa tão implausível, é daí mesmo que Moretti tira a graça do filme, a partir do inimaginável, junto com uma pitada de coragem. O filme mais conhecido de Moretti talvez seja o drama em luto O Quarto do Filho, Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2001. Apesar de ótimo (um de seus melhores trabalhos) não é a melhor referência aqui porque Habemus Papam trabalha no registro de um certo humor negro com fundo de seriedade. Nesse sentido, o filme se assemelha bastante ao longa anterior do cineasta, O Crocodilo, sátira pesada, mas fantasiada de comédia, a Silvio Berlusconi e sua figura de poderoso chefão da política e das comunicações na Itália.

A filmografia do diretor é marcada pelo humor sagaz, sem precisar ser rasteiro ou recorrer a subterfúgios da comédia rasgada. Se parece tão fácil atacar a religião atualmente, com tanto exemplos de estagnação intelectual e retrocesso cultural, Habemus Papam busca um caminho mais enviesado, o que reforça mesmo sua singularidade. No fim, existe um alvo muito claro no filme, coisa que a cena final sacramenta como uma pancada contundente naquele universo de homens cuja fé se encontra na corda bamba.