Por Rafael Saraiva

A saga do Shrek pode ter acabado (ou não, nunca se pode confiar no final de uma série tão lucrativa), mas em seus quatro capítulos, houve vários coadjuvantes carismáticos que caíram no gosto do público, como o Burro, o Biscoito e Gato de Botas. E foi este último o escolhido para ganhar seu próprio filme solo. Mas ainda que saído da franquia do ogro, Gato de Botas é perfeitamente auto-contido: alguém que desconhecesse Shrek (se é que existe alguém assim) certamente não adivinharia que este longa se trata de um spin-off.

Mas mesmo sem nenhuma referência, Gato de Botas faz uso de todo o mundo de conto de fadas estabelecido na franquia, e isso resulta em um problema de identidade no longa. Por todas as características inerentes ao protagonista, o longa traz toda uma influência cultural latina muito forte, principalmente em seu primeiro ato: a cidade de San Ricardo e sua ambientação “mexicana”, trilha sonora (destaque para o duelo de dança), a feição dos personagens humanos da trama, e as próprias vozes originais do casal principal, Antonio Banderas e Salma Hayek (repetindo a parceria clássica de A Balada do Pistoleiro). Mas esses elementos logo entram em conflito com a veia fantástica herdada de Shrek: feijões mágicos, gansa dos ovos de ouro, castelo nas nuvens, Humpty Dumpty. Essa mistura acaba não sendo homogênea na tela, e as diversas influências parecem se acotovelar por espaço durante todos os 90 minutos de duração.

Já o roteiro do longa não traz nada de novo, sendo apenas mais uma aventura do Gato, só que com uma história de origem atravessada em sua estrutura para dar mais volume. Tanto que há um flashback ininterrupto de uns 10 minutos de duração sobre a infância e adolescência do protagonista completamente anti-climático, e que só fez retardar a trama. Por isso, a reação de sono da Kitty após ter que ouvir toda essa história não deixa de também ser a experiência do espectador. Ao menos os roteiristas não utilizaram aquele batido tema de “descoberta do eu interior” – Gato de Botas que inicia o filme é basicamente o mesmo que termina: aventureiro, esperto, heroico e mulherengo. E por essa ótica, o grande personagem que de fato evolui no filme é seu antagonista, Humpty Dumpty, tão estranho que merece um parágrafo só para ele.

Afinal, no meio de tantos personagens fofinhos (literalmente falando – é só ver a atenção dada ao pelo dGato de Botas e da Kitty, em um ótimo trabalho de animação, capaz de ressaltar até os fios brancos), Humpty Dumpty é uma aberração. Visualmente desagradável e moralmente questionável, ele transita o tempo todo sobre a tênue linha que separa bons e maus – linha essa que normalmente é inexistente em projetos destinados a um público infanto-juvenil. Mas Humpty, entre uma maldade e outra, exibe traços de simpatia, e até pelo seu jeito atrapalhado (ou patético), vai se tornando uma figura quase trágica, e que é transformada por todos os acontecimentos, dos flashbacks da infância até seu destino final. Por isso, a relação entre ele e o Gato acaba sendo o grande eixo do longa, ofuscando completamente o romance entre o felino e Kitty, já que esta não tem muito a oferecer como personagem (a menos que o drama de não ter garras tenha comovido alguém).

Movimentado e cheio de cenas de ação, Gato de Botas em momento algum chega a brilhar ou chamar a atenção, mas é um filme ok, combinando boa qualidade técnica e uma trama aceitável. Satisfatório na medida certa para rolar uma sequência – ou até a franquia Shrek ser retomada.