Por Ramon Coutinho
Cinebiografias fazem parte de um ardiloso terreno, afinal lidar com personagens que já povoam o imaginário coletivo antes destes chegarem as telas acabam, muitas vezes, conduzindo tais histórias por uma complicada busca por fidelidade bibliográfica, comprometendo a versão cinematográfica a uma espécie de verdade maior, ilusória. Diante de Serge Gainsbourg essa tal “fidelidade” ou “verdade” se tornam parâmetros ainda mais questionáveis, afinal a própria polêmica trajetória do cantor e compositor francês já direciona a um questionamento de tais conceitos.
A versão do diretor Joann Sfar preferiu aderir a um compromisso de se aproximar do universo lúdico e criativo do artista, mais do que servir ao apelo óbvio que se enquadra em uma interpretação majoritária, confortável e acomodada. O funcionalismo narrativo evolui através do perfil múltiplo, das versões e mentiras, brincando com os clichês – Bardot, vida boêmia e de excessos – ampliando assim sua provocativa força artística.
O mito surge antes de tudo como herói de si, de sua perspicaz projeção num mundo conturbado e hostil. Se há guerra, há também a desobediência de convertê-la a favor da fantasia interna. A primeira parte do filme se dedica a apresentar essa inquietude encantadora, explorando a formação de Gainsbourg através das artes plásticas e de seu encontro com uma malandragem que marcará sua personalidade por toda a vida. Personalidade que desenvolve um alter ego ainda mais narigudo, estranho e orelhudo, mas que é fonte para reinvenção, explorando e pondo fogo nos medos e riscos mais paralisantes. Essa opção narrativa antifactual, ciente de sua ousadia, expõe o personagem com uma complexidade visual que vai além das conhecidas relações amorosas do personagem – como o oportunista subtítulo da versão brasileira faz parecer – alternando seus conflitos em um jogo contraditório, onde a vida heróica (Vie Héroique – que o título original faz alusão) parece cercada de uma errância eminente. O personagem reverbera cada vez que experimenta o limite, a insensatez, e daí, seu triunfo e simpatia.
Em um roteiro que se firma através dessa livre intercessão de possibilidades, a interpretação do personagem (Eric Elsosnino) acaba servindo pontualmente a toda obra sem se sobrepôr sobre ela, equívoco recorrente em outros exemplos do gênero. Ele atravessa suas fazes dentro de uma montagem que encontra fluidez não apenas no que deseja mostrar, mas também através das elipses. Da França à Jamaica em um corte, sem necessariamente se ocupar de uma explicação didática que dê conta de tais razões. Assim como, sem abrir parênteses, as canções são inseridas e entrelaçadas sempre junto ao contexto sentimental do personagem, como a cena do Homem da Cabeça de Repolho (título de uma de suas canções e um de seus apelidos).
O talento e a genialidade importam tanto quanto as outras qualidades menos nobres, dignas de um realismo surreal ciente da importância da desconstrução do ícone a favor do diálogo entre obra e espectador. E se Gainsbourg não parece achar lugar dentro de sua própria história, fazendo da inconstância autodestrutiva matéria-prima de sua arte camaleônica, é quase certeira sua adesão a uma tela de cinema, produzindo assim mais uma de suas invenções – mesmo que pelo olhar alheio – que entre incontáveis baforadas de cigarro acaba nos tragando pra sua fábula onde mesmo os peixes fumam, carros atravessam praias luminosas, as mulheres e as músicas que se encontram num mesmo tom que só diante de certos orgasmos parecem ganhar sentidos mais sinceros.