
Exibidores pedem revisão na distribuição de recursos do FSA e olhar integrado para a cadeia audiovisual
Publicado em 13 de novembro de 2025
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Por Mariana Toledo
O último dia da Max Minas Audiovisual trouxe uma novidade na programação do evento: o eixo exibição, focado no debate sobre políticas públicas voltadas a esse elo da cadeia e os novos rumos para o cinema brasileiro. Gabriel Portela, especialista em gestão cultural e políticas para o audiovisual, fez a mediação do painel que abriu a agenda desta quinta-feira, 13 de novembro.
Portela iniciou a conversa observando como o eixo da exibição às vezes fica “escanteado” nos eventos do mercado, mas que é necessário que essa agenda cada vez mais jogue luz na exibição – que, conforme ele definiu, é “a ponte mais realista da cadeia produtiva do audiovisual”. Afinal, o setor trabalha e produz obras para que elas sejam vistas, para que entrem em contato com o público. Mas já faz tempo que o segmento vem enfrentando grandes desafios – a pandemia, claro, foi um grande exemplo. Recentemente, houve certa recuperação dos filmes brasileiros – alguns títulos, como “Ainda Estou Aqui” e, mais recentemente, “O Agente Secreto”, trouxeram um novo fôlego. No entanto, ainda é cedo para respirar aliviado: outubro deste ano registrou a menor performance do cinema nacional em termos de bilheteria das salas de cinema dos últimos 27 anos.
“Temos coisas para celebrar, mas ainda não é consistente. E as políticas públicas são questões centrais nessa discussão. Os investimentos dos últimos anos voltados à produção foram robustos – o setor tem produzido mais de 200 filmes por ano. Mas esses títulos chegam ao mercado sem estratégia de lançamento ou recursos para distribuição, o que é fundamental. Assim não tem como o exibidor resolver mesmo”, assinalou Portela.
O especialista ainda comentou sobre a regulamentação do VOD, que segue sendo a grande agenda da política audiovisual brasileira, e ressaltou que o mercado desregulado no streaming afeta diretamente as salas de cinema. O filme “Homem com H”, por exemplo, de Esmir Filho, estava fazendo um bom público nas salas, mas ficou apenas 43 dias em cartaz e já estreou numa plataforma de streaming, interrompendo uma possibilidade de carreira que vinha numa crescente. “Hoje, o texto que avançou estabeleceu uma janela de nove semanas entre o lançamento do título no cinema e a disponibilização do mesmo nas plataformas – já é um avanço, antes nem isso existia no debate. Mas será que é suficiente?”, questionou.
Cláudio Marques, cineasta, exibidor, idealizador e coordenador do Panorama Internacional Coisa de Cinema e o Cine Glauber Rocha, endossou esse coro: “Fala-se muito pouco em exibição. Estamos acostumados a não mencionar, não entender a importância – sobretudo das salas de cinema. O setor está começando a compreender a necessidade da construção de políticas públicas que incluam as salas e, de forma mais ampla, entendendo a importância de se pensar o todo, e não só uma parte”.
Solidariedade entre os elos da cadeia
Na edição mais recente que organizou do evento em Salvador (BA), Marques recebeu especialistas do cinema francês e citou o mercado do país como uma inspiração – fazendo a ressalva de que, claro, o Brasil é outro território, tem suas peculiaridades e dificuldades, mas pode mirar nesse exemplo. “A palavra-chave para o cinema francês é justamente a solidariedade entre os setores. Não dá para pensar em investir em produção sem considerar quem e como vai ver esses filmes. A imensa maioria dos filmes não tem essa preocupação e nem essa verba, então não vai bem mesmo. É muito triste ver grandes filmes com salas vazias e também é triste ver a postura de produtores e diretores, que entraram nesse modo contínuo de trabalho – recebem o dinheiro, produzem, ganham prêmios e, na hora de entrar no circuito comercial, que é uma obrigação imposta pelos projetos que usam recursos do FSA, não há nada construído para isso. Tem excelentes filmes que não encontram seu público. E os produtores e diretores apenas dizem ‘que pena’, dão as costas e vão embora. O prejuízo fica todo nas mãos do exibidor, que não tem o subsídio do estado e ainda precisa arcar com questões como a cota de tela. Não acho que ela seja um problema – mas se o produtor, o diretor e o distribuidor não acreditam no cinema brasileiro, por que o exibidor vai acreditar?”, refletiu.
Ainda falando sobre a cota de tela, Marques sugere um mecanismo de compensação, no qual o exibidor que passar um número de filmes acima do que é exigido, recebe um valor proporcional, que pode ser revertido em serviços e produtos de manutenção das salas de cinema. “Hoje, o parque exibidor está muito sucateado. É caro demais criar e manter uma sala de cinema. Projetores bons custam, no mínimo, 250 mil reais. Entendo que quem cumpre suas obrigações de exibição do cinema brasileiro deve chegar em janeiro, entregar o relatório e receber um valor correspondente. Isso acontece na França – não estou inventando nada”, destacou.
Olhando para a cadeia como um todo, o exibidor diz ter uma preocupação muito grande também com a distribuição. Para ele, há editais de distribuição com valores fartos, o que acaba prejudicando o próprio setor. “Tem gente se lançando no mercado sem conhecimento nenhum. Estamos perdendo essa especificidade. Vejo cada vez mais distribuidoras abrindo, produtor virando distribuidor, e tudo isso sem esse conhecimento. Se o filme não der lucro, o distribuidor também não tem cobrança em cima disso. Precisamos que eles também passem a ter uma responsabilidade de retorno proporcional aos investimentos que recebem. O dinheiro está lá no FSA, só precisa ser melhor dividido. Da forma que fazemos hoje, damos dinheiro para as distribuidoras sem nenhuma cobrança em cima do que vai acontecer com os filmes. Não existe nenhuma consequência nesse sentido. Por isso acredito que elas precisam entrar também com recurso próprio, e não 100% subsidiado. Porque, assim, elas se desdobrariam para recuperar esse dinheiro. A própria distribuidora precisa acreditar nos filmes que estão sendo lançados”, apontou.
Na produção, o cenário é mais complexo ainda. E, na visão de Marques, também falta uma cobrança proporcional ao dinheiro investido, uma responsabilidade maior em cima do que é produzido. E, novamente, ele enxerga uma questão de profissionalização do mercado. “Tem gente que começa sem passado nenhum. Na minha geração, a gente fazia um curta, depois outro, depois um filme de baixo orçamento… Agora tem diretores que começam já com longas de grandes orçamentos. Isso tem a ver com o dinheiro farto que tem hoje e que, no passado, não tinha. Precisamos estabelecer metas de carreira, olhar para esse histórico – tanto para produtores quanto cineastas. Os filmes precisam dar retorno. E, se não derem, precisa haver consequências. Falta um choque de mercado”.
E avaliando a exibição em si, o diretor também enfatizou a importância da formação de público, que deve ser constante. “É essencial termos investimento nisso – levar crianças, jovens e estudantes o tempo todo para ver filmes brasileiros nos cinemas, em boas condições. Não pode ser uma vez ao ano. Claro que é ok exibir o filme na escola, projetado numa parede branca, mas a experiência na salas é outra. Existe uma rede possível para ser pensada e construída para isso. É sobre alfabetizar cinematograficamente as pessoas – inclusive os professores. Não é só para abordar questões temáticas, o filme que ‘é bom para a aula de história’. É falar de som, imagem, luz”, defendeu.
Legislações
Jack Silva, CEO da Movieland, com salas no Amazonas e no Amapá; presidente da AEXIB – Associação dos Exibidores Brasileiros de Cinemas de Pequeno e Médio Porte; e ainda membro do Conselho Superior de Cinema, é categórico: “Independente do filme que colocamos, precisamos ter público. Precisamos pagar as contas no final do mês. Se a realidade das salas aqui já é difícil, imaginem no interior do Amazonas e no Amapá. Lá, há um excesso de salas para a população local. Além disso, não dá para sobreviver com o tanto de promoções e novas legislações que aparecem para nós todos os dias”, disse, citando leis estaduais recentes que exigem coisas como Libras em todos os filmes, início do filme no horário certo, sujeito a pagamento de multa, e a permissão de que se entre com a comida que desejar na sala de cinema. “Quem paga a conta de tudo isso?”, critica.
Marcelo Lima, CEO da Tonks, fundador da Expocine e do Portal Exibidor e executivo à frente da operação do Cine Marquise, reiterou os problemas envolvidos nessas legislações. “São leis diversas, uma sobre a outra, e muitas que nos prejudicam. A meia entrada, por exemplo, é uma questão. São milhões de pessoas com direito à meia entrada. É cliente do Itaú, do Santander, da Elo, da operadora… Todo mundo tem direito, e não existe nada parecido no mundo. E há situações piores – em Belém (PA) e em Campinas (SP), por exemplo, quem tem mais de 60 anos não paga entrada. Aí chega um filme como ‘O Último Azul’, que fala sobre a terceira idade, e o exibidor prefere não passar. Vai exibir de graça? Precisamos que isso seja mais centralizado – que, se não forem leis federais, sejam no mínimo estaduais. Hoje, o cenário é de legislações complexas e específicas demais para cada município”.
Dentro desse tema, Lima também deu sua opinião em relação à cota de tela: “Assim como o Claudio, tenho salas de cinema onde o filme nacional faz sucesso. Não dependemos disso, exibimos muito acima da cota. Não é problema para nós. O problema está na formação de público para assistir”. Assim como Marques, ele defende um prêmio adicional de renda atrelado à cota de tela. “Já teve isso, era o PAR. Funcionava muito bem especialmente para os cinemas do interior. Você entregava um relatório de quantos filmes nacionais foram exibidos e recebia um recurso em retorno para investir em melhorias nos próprios cinemas – poltronas, som, 13º salário dos funcionários… Hoje o cinema só tem conseguido recursos via empréstimo, com exceção da Lei Paulo Gustavo”.
Já sobre o PL do streaming, o executivo considera “razoável”, mas acha que ainda pode piorar. “Do ponto de vista do exibidor é importantíssimo ter esse período mínimo de janela”, salientou.
Comportamento do público
Silva trouxe outros pontos críticos enfrentados pelo setor exibidor, como o comportamento, especialmente dos jovens, no ambiente do cinema. “Todo lugar tem regras. Nós temos regras nas nossas próprias casas. Mas não conseguem entender isso no cinema. Para além de formar público, precisamos educar. Cinema é espaço coletivo, não dá para fazer o que quiser lá dentro. Estamos vivendo um momento muito difícil, um dos piores para a exibição. Tem exibidor que sofre com gente comendo sushi e frango frito dentro das salas, sujando tudo. É nesse nível”, apontou o exibidor, lembrando que cinema não é só cultura – é também turismo, educação, economia e até saúde. “Tem muito jovem que fica o dia todo preso dentro de casa, não sai mais, os pais nem sabem o que eles estão fazendo no quarto. Normalmente estão assistindo conteúdos – que podem ser positivos, claro, mas nem sempre são. O cinema pode ajudar nisso. As questões de saúde mental têm afetado demais os jovens – e os profissionais também. Eu mesmo tive sérios problemas”.
Revisão de políticas públicas
Para Lima, a primeira coisa a ser feita para melhorar esse cenário é rever a distribuição de recursos. Ele lembra que, se aprovada a Lei do Streaming, o FSA terá ainda mais verba – mas, sem planejamento, isso não adiantará. “O recurso está completamente mal distribuído hoje. É um dinheiro que vai exclusivamente para a produção, e todos os outros serviços ficam marginalizados ao redor dela. É muito pouco recurso para desenvolvimento de roteiro, formação de profissionais da área… O que fica para exibição e distribuição é vergonhoso. Essa configuração cria uma falta de escoamento seríssima para os filmes. Produzimos atualmente a mesma quantidade de filmes dos Estados Unidos, sendo que eles tem mais de 40 mil salas e, nós, pouco mais de 3 mil. Rever tudo isso é urgente. Sabemos que para mexer nas políticas públicas leva anos. Troca de governo, nós temos que explicar tudo novamente. Temos muitos parlamentares que mal sabem como funciona a nossa indústria. O audiovisual tem pouca representação dentro do parlamento, o que torna ainda mais difícil conseguirmos qualquer tipo de melhoria”, observou. Segundo ele, pela urgência da pauta, ter mais recursos é primordial para reverter o sucateamento das salas de cinema – e isso vale inclusive para as grandes redes.
Marques, por sua vez, enfatiza a importância de olhar para a cadeia como um todo – começar a estruturar, organizar e estabelecer metas: “O que estamos vivendo hoje é uma anomalia, isto é, essa diferença entre os números de produção e exibição. Precisamos sair desse pensamento de que os filmes não vão dar nada. É necessário que a gente acredite neles – que eles são capazes de entrar nos festivais, no circuito comercial e gerar renda. Os exibidores querem acolher o cinema nacional, desde que exista uma organização. É um pensamento que, hoje, não existe”.
Futuro
Apesar da longa lista de desafios, os exibidores têm, de certa forma, uma visão otimista em relação às possibilidades para o futuro. Marques acredita que o setor audiovisual tem tudo na mão – gestores, produtores, distribuidores, exibidores e dinheiro, inclusive. “É saber usar esse dinheiro com responsabilidade. Precisamos de responsabilidade acima de tudo. Se não esse novo ciclo que estamos vivendo no cinema nacional será encerrado por motivos econômicos”.
Lima concorda e diz que estamos com “a faca e o queijo na mão”. Para ele, o fato de os eventos estarem começando a discutir exibição com mais frequência já é um bom sinal. Mas reforça: “Nunca vi uma abundância de recursos tão grande e, ao mesmo, uma falta de habilidade de geri-los enorme também. Falta foco sobre os riscos para os diferentes elos da cadeia e sobra esse descompasso enorme entre produção, exibição e distribuição”.


