
Eu sou a Lenda
Num futuro não muito distante, ao buscar a cura para o câncer, cientistas criam vírus tão mortal quanto mutante. Os poucos que sobrevivem transformam-se em espécie de vampiro, ser dotado de força sobre humana e que caça os que não estão infectados.
Will Smith encarna o militar e médico Robert Neville, um dos poucos sobreviventes e não infectados. Ele vive só em Manhattan. Se vira como pode durante o dia junto à sua amada cadela e se esconde dos vampiros à noite. No decorrer de seus dias, ele busca a cura para o vírus que quase acaba com a vida na Terra.
O melhor dessa parte do filme é a tentativa de Neville em construir uma vida normal, sociável. Além do afeto desenvolvido com a cadela, Neville cultiva, por exemplo, o hábito de pegar e devolver DVD’s numa mesma locadora. Para tanto, ele coloca manequins em posições estratégicas. Um deles é o atendente, tem ainda a moça bonita, possível paquera… Os planos abertos da cidade abandonada são significativos, a montagem desacelera o ritmo da película para apreciarmos a quantidade de máquinas e construções, toda a civilização, abandonada, inútil. A solidão e o abandono, medos ancestrais do Homem, são tratados no filme com respeito.
O principal de Eu Sou a Lenda, no entanto, está nas lutas e perseguições, seja num carro a 200 km/h em ruas repletas de automóveis parados, seja contra os terríveis vampiros. Aqui, impera a proximidade exacerbada da câmera sobre o mocinho, ritmo acelerado e efeitos especiais, que ainda estão longe de convencer sobretudo quando confrontados com a realidade.
A adrenalina, talvez, só perde para o conteúdo religioso- fundamentalista dessa produção. Se no início, a Humanidade carrega a praga e ira de Deus por tentar achar a cura para um dos seus piores males, ao final será a inspiração divina, que tem na célula familiar sua mais nobre e derradeira representação, que trará a redenção. Neville, como um Cristo de Hollywood, terá de perecer para que a Humanidade sobreviva. O céu e a imortalidade estão garantidos à Neville, que mandará tudo pelos ares no melhor estilo fundamentalista palestino.
Eu sou a Lenda traduz a antiga batalha entre religião x ciência e o filme pende claramente para a primeira.
Uma das últimas imagens da película é a de uma igreja protestante logo no centro de um povoado “limpo”, que mostra o rumo para a qual a humanidade deverá seguir, já renovada e com a cura para os novos tempos.
Eu sou a Lenda segue o padrão de roteiro dos dias de hoje dos grandes estúdios. Se a trama é objetiva, valendo-se de uma dramaturgia e direção simples, falta ambigüidade ao protagonista. Pode-se dizer que quase falta humanidade a Neville, que funciona a base de ações automáticas, com textos decorados do bom mocismo norte-americano.
Não se questiona, no filme, as pesquisas de Neville que nos remete diretamente aos nazistas, por exemplo. “O futuro da Humanidade está em jogo”, argumenta-se, e o herói segue com a consciência limpa.
Nesse sentido, interessante beber um pouco na fonte, no livro no qual o filme se baseou.
Em I am Legend, escrito em 1955 por Richard Matheson, para muitos espécie de Hemingway da literatura de terror, Neville é visto com horror tanto pelos vampiros quanto pelos humanos sobreviventes. Neville caça a ambos sem piedade, em busca da cura para o vírus letal.
Segue-se a dúvida a cerca da realidade que cerca a todos: o que está acontecendo de fato? Quem é o monstro: Neville, os humanos infectados ou os vampiros? Será a realidade tal como Neville a vê? O desfecho é em muito diferente do realizado no filme.
Vale lembrar que I am Legend foi escrito em plena Guerra Fria e pouco após a II Grande Guerra Mundial. Na ficção científica de Matheson, a certeza absoluta das idéias é questionada. Busca-se o diálogo, a tolerância e não o fundamentalismo suicida.
Tudo isso se perde no filme encabeçado por Smith, que se transforma no portador da verdade única e indiscutível. A palavra de Deus!
PS: É engraçado e desconcertante ver Alice Braga afirmando desconhecer Bob Marley. De fato, estamos no terreno da ficção científica.