Por Rafael Saraiva
É quase impossível não ter uma memória afetiva de algum lugar. Por mais desgarrado que se seja, sempre existe aquele local que nos marcou, por remeter a uma série de lembranças (boas ou ruins) que nos afetaram no passado. Por outro lado, o ritmo do progresso que dita uma cidade é implacável: a paisagem evolui, os cenários mudam num piscar de olhos, transformando-se em outros completamente diferentes. E nesse contexto frenético, como as memórias de lugares que não existem mais sobrevivem? E é sobre como essa dinâmica urbana interage com as memórias que Ela Morava na Frente do Cinema trata.
O quase transe que envolve a protagonista em suas visitas à casa onde hoje se localiza uma assistência técnica, e que um dia foi sua morada, é a característica mais marcante do curta-metragem. Ela percorre lentamente seus corredores em buscas de pistas e evidências de sua passagem por lá, acompanhada pela câmera oscilante do diretor e por um som ambiente estourado (quase incômodo) que amplificam a instabilidade que vive. E não é por acaso o fato de seu atual prédio estar em reforma e o antigo cinema ter dado lugar a outra edificação: o ambiente urbano que a cerca está em constante alteração, deixando-a completamente sem rumo, acuada.
Paralelamente a isso, o curta também mostra o fim do seu relacionamento, pois sua namorada está na véspera de uma viagem. Mesmo nesse momento de despedida, ela não consegue dar vazão a seus sentimentos, sendo extremamente contida e passiva o tempo todo (características que são fruto da boa atuação da atriz principal). Fugindo do estereótipo de amor lésbico fetichista do cinema (as atrizes tem aparência bem normal), essa trama dá mais profundidade à protagonista, além de dialogar com o tema do filme, mas a impressão que deixa é que também carece de uma amarração maior, talvez pela falta de compromisso cronológico que o filme tem – e em se tratando de uma obra onde o fator tempo é tão pertinente, essa é uma decisão arriscada.
Utilizando ainda a imagem de um VHS deteriorado como uma metáfora interessante, e contando no final com uma cena muito bem feita onde a protagonista parece andar para dentro da tela de cinema, Ela Morava na Frente do Cinema é um curta-metragem lento e difícil, mas com uma abordagem não-óbvia das memórias sob a ótica dessa inquietação urbana – tema recorrente para diversos realizadores brasileiros nos últimos tempos.