Por Rafael Carvalho

Ao contrário do que parece, Ilha 10 é uma pessoa. Ou melhor, o codinome de uma pessoa que perde suas particularidades e passa a ser tratado como mais um algarismo entre tantos prisioneiros. O golpe militar que o general Augusto Pinochet infligiu ao Chile, em 1973, no governo do presidente socialista Salvador Allende, trouxe um tratamento “especial” para os altos funcionários do governo Allende. Eles foram levados como prisioneiros de guerra (?!?) para a ilha Dawson, na gélida região do extremo sul do país, recebendo, cada qual, uma identificação numérica que os identificava.

Ilha 10 é Sergio Bitar, ex-ministro das Minas, que relata os momentos e situações vivenciadas no local durante o período em que ficaram na ilha, antes de serem enviados para outro campo de concentração. O filme é baseado no seu livro Isla 10, ambos narrando em primeira pessoa as torturas e trabalhos forçados a que os homens de confiança de Allende tiveram de se submeter.

O chileno Miguel Littín, cineasta veterano e importante nome do cinema político na América Latina, sempre militou contra os regimes ditatoriais e opressores do Chile. Talvez por isso, Dawson Ilha 10 carregue a chaga do filme de denúncia que não tem muito mais a dizer do que “revelar” a opressão e sofrimento vividos pelos inimigos do regime. Não que esse tipo de situação não deva ser mais exposta (pelo contrário, nunca devemos esquecer de retratá-la), mas é uma campo já saturado de histórias, que acabam se repetindo caso não haja algo a mais.

Exemplo disso é o uso um tanto indiscriminado das imagens de arquivo que mostram momentos da invasão das tropas de Pinochet em Santiago. Elas não têm muito a acrescentar, não existe muito a dizer além do que já sabemos, estão ali para demarcar a situação, quase como uma obrigação de usá-las pela disposição e importância como documento histórico.

Ainda assim, muitas vezes Littín consegue desviar desse caminho clichê ao desenvolver a história e as habilidades de alguns daqueles homens em situação de xeque (lembremos que nenhum estava acostumado a trabalhos braçais nem tinham preparação física para suportar as torturas, já que ocupavam todos de cargos intelectuais). Mesmo que poucos deles ganhem destaque, como o engenheiro Miguel Lawner (vivido pelo baiano Bertrand Duarte), incumbido de reformar a igreja local, ou mesmo o tenente Labarca (Cristián de la Fuente), vigia durão, mas capaz de bons atos para com os prisioneiros, são esses momentos que conferem humanidade e complexidade a uma história de luta e sofrimento.

Ainda conta a favor do filme um trabalho de direção de arte impecável que reconstrói a época e os locais retratados de modo exemplar e os quesitos técnicos de som e fotografia que saltam aos olhos e ouvidos, tipo de produção classe A, ainda que feito com poucos recursos (destaque há de ser direcionado para a produtora baiana VPC, de Walter Lima, uma das responsáveis pelo filme).

Ainda que peque pelo discurso político da denúncia que não revela nada de muito novo no campo dos regimes antidemocráticos, Dawson Ilha 10 segue como uma importante bandeira de registro de como age e se manifesta um sistema opressor. Ainda mais sobre homens que queriam e trabalhavam democraticamente e pela força do poder público para fazer valer os ideais em que acreditavam.