
Contra o Tempo
Por Rafael Saraiva
Logo após os créditos iniciais, testemunhamos o piloto de helicópteros Colter Stevens acordar, desorientado, dentro de um trem rumo a Chicago e em frente a uma mulher que aparentemente o conhece. Em seguida, vê seu reflexo em um espelho e não reconhece o homem que está ali, como se enxergasse (e experimentasse) o mundo através de outra pessoa. O mesmo acontece com o espectador, que presencia esses primeiros minutos do filme com a mesma confusão vivida pelo personagem e sem a menor ideia do que está acontecendo…até o trem explodir – matando todos a bordo – e Colter despertar dentro de uma câmara claustrofóbica, com outra mulher misteriosa lhe falando através de um monitor. Assim, ao posicionar o espectador e protagonista juntos nessa confusão, Contra o Tempo inicia sua jornada através das meias e falsas verdades que são oferecidas sobre o que é real.
Como o bom militar que sempre foi, Colter, mesmo sem compreender totalmente o contexto fantástico do projeto Código-Fonte no qual está inserido, aceita prontamente a missão que lhe é dada: explorar o “cenário” do atentado ao trem para achar seu responsável, repetindo a situação o número de vezes que forem necessárias para atingir seu objetivo. E é aí que Contra o Tempo aborda uma questão que lhe é central: a percepção da realidade. A cada novo retorno, o piloto se apega cada vez mais a aquela(s) realidade(s). Algo que não é compreendido pelos seus superiores, e nem mesmo pelo criador do projeto, o doutor Rutledge (Jeffrey Wright em uma atuação desnecessariamente caricata, um dos poucos pontos fracos do filme), que não dimensiona o alcance de sua criação por simplesmente não ser aquele a experimentá-la. Por isso, conforme as perguntas surgem, aquilo que era seu trabalho mais importante torna-se mais que isso: vira sua saída e uma rara segunda oportunidade de fazer as coisas diferentes (ainda mais após descobrir o contexto no qual foi recrutado para o projeto). Um processo de desconstrução do militar em sua última missão e o renascimento do homem por trás do uniforme.
E nessa jornada, é engenhoso como as duas personagens femininas do filme são essenciais para essa transformação de Colter, tornando-se suas pontes de sanidade nesse nexo de realidades. Através de um monitor, Goodwin é praticamente seu único contato com o mundo exterior, sendo seu canal de informações e último elo de ligação com a vida que deixou para trás. Já Christina é seu porto seguro dentro do Código-Fonte: não importando quantas vezes aquele trem explodisse, ela sempre estaria lá, recebendo-o com um sorriso no rosto. Um relacionamento que nasce em terreno improvável, mas que é fundamental para que ele se permita acreditar piamente naquela realidade.
E o que poderia ser um grande dilema – o que verdadeiramente real e o que é alternativo/derivado/simulado? – é tratado com a maior naturalidade, por um simples motivo: a noção da percepção da realidade já comentada anteriormente. Tudo é real para quem vivencia. E chega a ser até tocante o modo como tanto o filme quanto seu protagonista passam a acreditar nisso. É superando essa dúvida que Colter evolui como ser humano, em seu fatídico caminho de desapego de tudo que passou para apostar em algo totalmente novo, que desafia (e contraria) até mesmo as explicações dadas para ele. E é por isso que o clímax do filme consegue tão bonito e com uma mensagem positiva, daquelas que não se vê todo dia: pegando emprestada uma expressão do inglês, é o “leap of faith” do personagem, seu salto da fé rumo ao desconhecido. E a cena em questão, com sua imagem “congelada” e um tema arrebatador composto pelo Chris Bacon ao fundo, simboliza justamente esse ponto de mudança para Colter.
Mesmo sem nenhum virtuosismo ou demonstração de genialidade, o diretor Duncan Jones fez um filme de ficção científica intrigante o suficiente para sobreviver mesmo à várias revisões e capaz de movimentar uma legião de fãs dispostos a discutir teorias e possibilidades. E não satisfeito, ele acerta também nos pequenos detalhes. Em uma abstração inteligente, embora Colter “personifique” o professor de história Sean Fentress, o tempo todo é o ator Jake Gyllenhaal que está na tela. Além disso, as elipses são usadas com muita eficiência para agilizar a trama nos momentos-chaves, e dosar na medida certa as passagens dentro e fora da máquina. E mais que tudo, O grande trunfo narrativo de Contra o Tempo é não se prender ao mistério da identidade do(a) terrorista. Tanto que essa revelação chega sem nenhuma grande surpresa ou reviravolta, com direito até a uma motivação bem clichê. O filme objetiva ir além, seja explorando a misteriosa natureza do Código-Fonte e suas possibilidades, seja desenvolvendo o drama de seu protagonista. Opções muito mais interessantes do que se apequenar a um simples jogo de adivinhação.
Contra o Tempo ainda arranja tempo para se arriscar perigosamente em sua conclusão que, ainda que seja inegavelmente coerente com tudo o que foi apresentado anteriormente e que proporcione possibilidades interessantes para uma continuação, não chega perto do impacto e elegância que seria terminar com a já citada cena do clímax. Mas nada que manche esse belo filme de ficção científica, nem o trabalho do diretor Duncan Jones que, em apenas seu segundo filme, já se firma como um dos bons nomes desse gênero que já proporcionou tantos exemplares entre os clássicos da sétima arte.