
Cães de Aluguel
Por João Paulo Barreto
Rever Cães de Aluguel, primeiro filme de Quentin Tarantino, é uma experiência de quase total reconhecimento de um estilo que, apesar de não ter sido originalmente criado por ele (podemos ver a gênese daquela narrativa ágil e fragmentada lá em Acossado (1959), primeiro longa de Godard), veio a se tornar sua marca. Não é mais novidade citar a formação cinematográfica do diretor norte americano, que foi feita através de uma intensa audiência a filmes baratos que compuseram a blaxplotation, além de qualquer fita que chegava à suas mãos nos tempos em que era balconista de vídeolocadora. Mas, vê-la na prática e em retrospectiva, após já conhecer seu currículo atual, torna a experiência orgasmática.
Brincando com a montagem, algo que se tornaria um estilo próprio e imitado por toda a década de 90, Tarantino apresenta a trama de modo indireto, parecendo treinar para o que faria dois anos depois em Pulp Fiction, sua obra-prima. Vamos nos familiarizando com os personagens pouco a pouco. Sabemos de cara, claro, quem é o líder do bando. Basta observar a cena inicial, quando os vemos dissecar cultura pop durante o café da manhã, em um papo informativo sobre Like a Virgin, de Madonna, e sua referência ninfomaníaca. Observe o modo como o personagem de Lawrence Tierney, Joe, xinga ao reclamar do fato de que o Mr. Pink (Buscemi) não contribuiu com a gorjeta. A voz grave assusta justamente por nos fazer imaginar do que aquele brutamontes seria capaz de fazer. E se ele tem na figura do próprio filho um dos organizadores do futuro golpe, isso só nos leva a pensar que moral não faz parte de seu modo de criá-lo. Alguma dúvida sobre quem é que manda?
Mas assistir a um filme de Tarantino não é somente uma experiência cinematográfica. É musical, também. O diretor insere suas canções prediletas tornando-as parte da história. O programa de rádio que acompanha grupo, o K –Billy Super Sound of 70´s, ilustra as cenas tornando as músicas um elo entre os personagens e o espectador. É justamente ao observar as inserções da trilha sonora no começo do filme, com a gangue colorida caminhando em slowmotion em direção ao seu malfadado e sanguinolento roubo, é que se percebe como ele soube aplicar de forma intensa tudo aquilo que aprendeu com seu mergulho na filmografia americana. Ver um filme de Tarantino é certeza de que iremos conhecer um punhado de conjuntos musicais que parecia ser familiar somente a ele.
A violência é utilizada não de forma gratuita, como muitos poderiam pregar. Ela possui uma razão de existir. Ela demonstra a motivação daqueles personagens. São pessoas que chamam o que fazem de trabalho. São pessoas que dominam o que fazem do mesmo modo como parecem conhecer os efeitos colaterais de seu meio de vida. “Leva-se dias para morrer com um tiro na barriga”, explica Mr. White (Keitel), numa tentativa de acalmar Mr. Orange (Roth) que agoniza em um mar de sangue. E ele parece conseguir trazer esperança ao homem que agoniza com uma bala nos intestinos. Os personagens criados por Tarantino demonstram-se profissionais no que chamam de labuta. E eles conseguem nos convencer de que, sim, eles estão no domínio da situação, por mais brutal que seja a idéia que eles possuem de profissionalismo. Para eles, os únicos que não podem ser profissionais são os psicopatas. Estes não conseguem discernir a necessidade de matar um civil da obrigatoriedade de se matar um policial. “Você não matou gente de verdade, não, né? Só matou policiais, não foi?”, pergunta Mr. Pink a White. Resumindo, são pessoas que vivem os seus meios de vida de forma natural, como um trabalho qualquer, por mais brutal e letal ele seja.
Nos flashbacks inseridos na trama há uma intricada rede narrativa, mas que não nos confunde. Em uma cena, chega a haver um flashback dentro do flashback, quando Orange se recorda do momento em que começou a estudar a “história do banheiro” (nada mais que um modo de se comunicar através da linguagem do bando de ladrões onde ele iria se infiltrar). Conhecendo o modo como aquelas pessoas conversam, percebemos seu mundo. É um mundo sujo, que o diretor soube apresentar bem ao enquadrar a reunião no galpão após a fuga da polícia. A câmera, inicialmente, nos mantém à distância, nos fazendo perceber que naquele universo gangster não há o imaginário de glamour que os clássicos trouxeram. São pessoas cuja violência reflete todo o seu modo de viver, pensar, conversar e agir. Não há um só papo entre eles que não termine em insinuações de violência. Curioso observar que a única relação que parecia possuir certa afinidade sincera era a de Orange, o policial infiltrado, com White. Ou seja, algo que estava fadado a terminar do modo trágico como terminou.
E se Quentin Tarantino preferiu poupar o espectador da visão de uma das cenas mais chocantes do longa, é por saber que a violência pode ser usada no cinema não de forma gratuita, mas reflexiva. Quando se quer chutar o pau da barraca, dirige-se À Prova de Morte e o resultado é tão bom quanto.