
Balada de Amor e Ódio
Por Rafael Saraiva
Os créditos de abertura de Balada de Amor de Ódio sintetizam muito bem o que será apresentado a seguir: agressivos, despejam no espectador uma avalanche frenética de imagens, alternando referências religiosas, cinematográficas (dos monstros da Universal até Cannibal Holocaust, passando por Flash Gordon e Barbarella) e figuras históricas reais, misturando tudo em um grande caldeirão e borrando a linha que separa a verdade da ficção. E o resultado é esse louco triângulo amoroso envolvendo dois palhaços e uma trapezista, fortemente entrelaçado a períodos políticos conturbados da Espanha no século 20, sem nenhum tipo de sutileza, acanhamento ou concessão por parte do diretor Álex de la Iglesia.
Embora o personagem principal da película seja Javier, seus 15 minutos iniciais são dedicados a seu pai. E embora essa introdução seja um pouco longa demais (a mudança de protagonista soa brusca depois), é inegável a sua força. A imagem de um palhaço vestido de mulher, armado com um machete e liderando um batalhão bizarro que mistura soldados e outras figuras circenses, em plena Guerra Civil Espanhola, é daquelas marcantes, que saem da sala de cinema na cabeça do espectador. Só que mais que isso: esse prólogo é tão significativo que moldam o jovem Javier de um jeito que o definirá inexoravelmente. As palavras de seu pai, que o ordenam ser um palhaço triste e se agarrar à vingança quando chegar a hora certa, são uma profecia que ecoam pelo resto do filme.
Após um salto temporal de mais de três décadas, vemos Javier, já entrando na meia-idade, enfim abraçando seu legado e ingressando no mundo circense. A diversidade dos personagens que habitam aquele local é fascinante, com uma riqueza de peculiaridades e dramas, onde eles formam uma verdadeira família de rejeitados, só podendo contar uns com os outros (no segundo ato do filme, há uma cena onde todos eles marcham juntos sob a chuva que é muito simbólica disso). E por isso é emocionante ver a relação que o dono tem com o circo, de Ramiro e sua elefanta (amor forte o bastante para superar o fato dela ter esmagado e matado sua mulher), o pequeno “Motoqueiro Fantasma” e sua incessante busca pelo turbo perfeito, o casal Andrés e Sonsoles (e os vários cachorros que existem entre eles), e por fim, o palhaço Sergio e a trapezista Natalia, casal abastecido por muito amor, ódio, ciúme, violência e desejo. Nesse ambiente, Javier se torna o novato, que tenta se encaixar sempre de modo desajeitado, muito devido a sua natureza introspectiva. Mas quando ele se apaixona por Natalia e entra em rota de colisão com Sergio, é acesa a fagulha que faltava para esse barril de pólvora explodir e as palavras de seu pai se concretizarem.
Olhando mais de perto esse antagonismo entre os palhaços, é importante notar como ele vai além dos estereótipos. Afinal, seria muito fácil delinear a situação de modo em que Javier fosse simplesmente o herói da história e Sergio alguém 100% desprezível. Mas Álex de la Iglesia, que além de diretor é o roteirista do filme, entrega um cenário muito mais complexo. Embora Sergio seja inegavelmente instável e violento, quando está por baixo da maquiagem e interagindo com seu público infantil, ele se transforma (e até por isso é visto por todos como a grande atração daquele circo). O talento e gosto pelo ofício faz parte dele – é só ver sua tristeza quando é expulso da festa infantil devido a sua aparência – e é seu último elemento de redenção. Já Javier, tal qual seu pai previu, é o palhaço triste por natureza, sem precisar nenhum esforço para tal. Sua falta de vivacidade e empatia é evidente, com uma existência patética, sem motivação alguma. Só por pintar os personagens com essas tintas fortes, a película já se torna mais interessante. Mas ela vai além e não se intimida. E tudo pelo último vértice desse triângulo: Natalia.
Objeto do ciúme de Sergio e da devoção de Javier (com direito ao momento transgressor onde ele vê sua amada literalmente como uma santa), Natalia talvez seja a personagem mais enigmática do longa. Ao mesmo tempo em que sofre nas mãos do namorado, nutre por ele um incessante desejo carnal que a impede de fugir. Ao passo que não hesita em se envolver com seu novo amigo, para logo em seguida erguer sua redoma novamente. Uma personagem difícil de compreender as atitudes, e por isso se torna, mais que centro da disputa, o grande elemento transformador desses homens. O suficiente para que eles percam suas identidades no processo, deixando de serem Javier e Sergio para se tornarem o palhaço triste e o palhaço feliz em tempo integral, mergulhados num poço sem fundo de loucura e tragédia. E é claro que para uma dinâmica tão intensa funcione na tela, são necessárias ótimas atuações – e Carlos Areces, Antonio de la Torre e Carolina Bang estão magníficos em cena.
Mas seria raso analisar Balada de Amor e Ódio sem a devida contextualização histórica que permeia a vida desses personagens. Da Guerra Civil espanhola ao começo da queda do Franquismo, os acontecimentos políticos pautam de forma bem incisiva a passagem de tempo na trama (e o filme escorrega quando não o faz assim, com cenas que parecem acabar bruscamente, em elipses estranhas). Utilizando imagens de noticiário, notícias de rádio e manchetes de jornal para ilustrar a situação vigente na Espanha, o diretor enfraquece a linha entre o real e a ficção ao fazer de seus personagens testemunhas in loco de fatos históricos. O monumento do Valle de los Caídos é essencial por tudo o que remete: sua construção conturbada, o ideal de Franco que representa, o fato de abrigar corpos de mortos na revolução e o simbolismo de sua cruz gigante – e não é de se espantar que seja o palco do apoteótico clímax da película. Outro evento real ali mostrado é o atentado terrorista contra o então presidente Luis Carrero Blanco, que havia assumido o governo há poucos meses. E nada mais simbólico do que a cena onde Javier morde a mão de Franco para o diretor destilar abertamente sua crítica, em uma clara alusão da revolta do cidadão contra aquele que provê o sustento do país. E várias outras leituras são cabíveis, como a analogia entre o triângulo amoroso e a relação entre povo-Franquismo-Espanha.
Arrebatador no aspecto visual, a película traz alguns dos palhaços mais assustadores já concebidos no cinema, capazes de deixar Pennywise, de It – Uma Obra-prima do Medo, com medo. A maquiagem utilizada intensifica muito a expressividade daqueles rostos, em uma simbiose macabra de tintas, marcas faciais e cicatrizes. Um mar de texturas que, sob a iluminação adequada, cria imagens aterradoras, como na primeira aparição de Javier pós-automutilação. Além disso, em uma decisão inteligente, a estilização dos ambientes e as cores fortes usadas nos cenários e roupas dão um aspecto levemente fantasioso que faz a estética circense transbordar os limites da lona para o mundo todo, fazendo daquela Espanha um grande picadeiro.
Capaz de suscitar as mais diferentes sensações, levando plateias do riso ao choque em alguns segundos, é difícil sair indiferente a Balada de Amor e Ódio. Por não ter medo algum de arriscar, é daqueles filmes que suscitam as mais extremas opiniões, para o bem e para o mal. Uma viagem impactante como pouco se vê no cinema. E eu fui arrebatado com gosto.