Por Rafael Carvalho
Tem sido muito comum recentemente que o filme de ficção se utilize de recursos e preceitos da linguagem documental, interessante tentativa de conferir maior “realidade” para suas histórias. No entanto, o movimento inverso é pouco usual, mas é nesse registro que se enquadra Anderson Silva: Como Água, produção norte-americana sobre o lutador brasileiro de MMA (artes marciais mistas, da sigla em inglês), um dos esportes que têm ganhado mais visibilidade e admiradores nos últimos anos.
Isso porque o documentário do novato Pablo Croce é exímio em construir toda uma trama calcada em um momento específico da vida de Anderson Silva: o desafio a ele feito pelo marrento e prepotente Chael Sonnen em 2010. Anderson detém o cinturão dos pesos médios na UFC há mais de cinco anos, um feito inédito na história do campeonato. Assim, antes de ser uma cinebiografia, o longa se preocupa em contar essa história em particular e acaba, então, revelando muito da personalidade, atitudes e talento do lutador. E esse é um dos grandes acertos do longa porque retira toda a carga de convencionalidade que a maioria documentários carrega.
Porque além de ser um dos grandes lutadores do MMA (o que o documentário, é claro, defende através de uma série de depoimentos favoráveis), Anderson revela também um grande ser humano, profissional justo, centrado em seu trabalho, com respeito ao oponente (mesmo que a recíproca seja totalmente oposta). Antes da luta, em diversos pronunciamentos, Sonnen fazia questão de sempre menosprezar e atacar Anderson, tipo de provocação vil que mais aumentava a figura de desprezível de Sonnen.
Pois esse é o material perfeito para que o documentário contraponha esses dois antagonistas, tudo favorecendo a história do lutador bonzinho que sai da periferia e é ameaçado no ringue por um completo idiota. E talvez resida aí um problema do filme: sua tentativa de tornar tudo muito maniqueísta, muito polarizado (embora todo o registro tem caráter de documento, aconteceu de fato, o que de certa forma absolve o filme, mas não o impediria de buscar outras camadas que tornassem os personagens mais tridimensionais).
De qualquer forma, o filme se beneficia de toda essa situação e constrói sua trama muito bem amarrada e esquematizada, quase como se houvesse um roteiro previamente definido. A curta duração do filme também ajuda a fechar bem essa história, sem intenções de querer ser algo maior do que pretende nem inchar o filme.
Além disso, Anderson se vê inserido num ambiente estranho já que resolve fazer todo seu treinamento nos Estados Unidos (fala pouco de inglês), longe da família e amigos. Por sua vez, o esporte também tem muito de político, em que é preciso seguir certas regras intrínsecas ao jogo de interesses dos envolvidos, no sentido de atrair público e chamar atenção midiática do evento, tendo Anderson que driblar essas questões para continuar fazendo bem seu trabalho (o que lembra bastante o dilema de Airton Senna no final de sua carreira, revelado no documentário inglês sobre o piloto de Fórmula 1).
Daí que é bastante pertinente o filme se iniciar com uma fala exemplar do mestre das artes marciais, Bruce Lee: “Se você coloca água em um copo, ela se torna o copo; se você coloca em uma garrafa, ela se torna a garrafa. Seja como a água”. Ele defende assim a necessidade do lutador em se adaptar ao ambiente em que está inserido a fim de sair vitorioso, justamente o movimento que Anderson busca fazer, muitas vezes tropeçando no meio do caminho. Nesse sentido, o documentário humaniza bastante a trajetória desse lutador vitorioso, que já deixou sua marca na história do MMA, mas que mesmo assim ainda tem muito de determinação e respeito ao esporte, ao seu próprio trabalho (o momento em que ele se ajoelha perante o “inimigo” é exemplar nesse sentido, a prova maior do grande homem que ele é).
Portanto, o maior desafio de Anderson é esse: ser como água, se adequar ao formato, às intransigências, aos meandros de uma profissão dura e exigente, mantendo, ao mesmo tempo, a serenidade e decência. E como é dito pelo próprio Anderson Silva, ninguém bate mais forte que a vida. O que importa é o quanto você consegue apanhar dela.