Por Rafael Saraiva

Na histórica citação que abre e dá subtítulo ao documentário, Bruce Lee aconselha sermos como água: “Esvazie a sua mente, não tenha forma, seja moldável, como água. Se você coloca água em uma xícara, ela se transforma na xícara. Se você coloca água em uma garrafa, ela se transforma na garrafa. Você coloca água em um bule, ela se transforma no bule. A água pode fluir, ou se espatifar…seja água, meu amigo”. Palavras que podem soar óbvias, mas que trazem consigo muitos significados, podendo ser aplicadas em diferentes contextos. Assim, de que jeito elas se relacionam com o lutador de MMA mais celebrado na atualidade, o brasileiro Anderson Silva? Afinal, são épocas diferentes, lutas diferentes e indivíduos diferentes. Parece uma decisão consciente que o filme, em nenhum momento, explicite uma discussão sobre isso, evitando o didatismo em excesso. Ao invés disso, ele “apenas” fornece material para que o público faça sua própria(s) leitura(s), sendo essa a maior virtude desse interessante, ainda que falho, documentário.

E é um grande ponto de partida não necessitar de um conhecimento prévio das artes marciais mistas ou, especificamente, do UFC (maior organização de MMA) ou de seus lutadores, para poder apreciá-lo. Pontuado apenas com discretos letreiros para situar o espectador, o recorte feito da história é tão preciso que quase parece uma ficção. Anderson Silva, nosso vitorioso protagonista e herói, começa o longa em xeque: questionado pelo público, mídia e seu chefe pelo seu desempenho não tão explosivo em uma luta que acabou vencendo por pontos, ele se encontra em uma posição difícil, tendo que reconquistar seu respeito que acabara de ser arranhado. Então Dana White, presidente do UFC, como o Homem por Trás da Cortina que simboliza, organiza um desafio capaz de devolver a glória ao brasileiro, ou acabar de vez com sua carreira – e, de um jeito ou de outro, sair ganhando como grande showman que é. E por fim, há a figura de Chael Sonnen, o lutador americano escolhido para desafiar Anderson, que segue a cartilha dos grandes vilões da ficção: falastrão e arrogante, age como a antítese do herói, e a cada nova declaração vai se torna mais e mais execrável ao passo que torcemos mais e mais pelo brasileiro. Três papéis tão claros e bem definidos que em alguns momentos parece difícil acreditar que tudo aquilo aconteceu de verdade, com essa história de redenção tão parecida a tantas tramas já vistas em livros ou filmes de Hollywood. Um daqueles casos em que não só a vida parece imitar a arte, mas nos faz questionar se nossa vida há muito tempo já não assimilou essas referências ficcionais, em uma espécie de ciclo onde realidade alimenta fantasia que alimenta realidade.

E com Dana White e Chael Sonnen tão empenhados em seus papéis, restava a um único ator tomar seu lugar sob os holofotes: Anderson Silva. E é aí que a citação do Bruce Lee parece fazer todo o sentido. O documentário trata do lutador Anderson Silva se transformando no personagem Anderson Silva, desse grande show que é o UFC – que não apenas acontece dentre do octógono, mas também fora dele: nas entrevistas, na pesagem, nas sessões de autógrafo, nas festas, nos treinamentos, em cada um desses elementos que compõem esse espetáculo. E o brasileiro mostra que essa não é uma transição fácil: em diversos momentos ele parece cansado de tudo aquilo, como na ótima cena da entrevista pelo telefone, e as considerações que faz em seguida sobre o modo mecânico e óbvio que as perguntas são conduzidas. Ou quando ele admite que não aguenta mais treinar e esperar pelo dia da luta. É o lutador se tornando água, e se moldando no grande herói que a história pede que ele seja. Mas vale ressaltar que essa alegoria não é exclusiva do UFC ou do show business – em algum grau maior ou menor, é uma situação passível de acontecer no cotidiano de cada um de nós, seja no ambiente de trabalho ou em qualquer de nossos círculos sociais – e muitas vezes somos água sem mesmo nos darmos conta disso. É algo que não necessariamente é uma coisa negativa (ou positiva), mas uma característica valorosa de ser aprendida e utilizada com sabedoria. Todo esse contexto simbólico do filme é muito forte e bem amarrado, sem dúvida seu maior mérito.

Infelizmente, é uma pena que a execução do longa não seja tão eficaz assim, com uma parte técnica deficiente. O trabalho de câmera é bem fraco e confuso. Talvez pelo calor do momento no registro das situações, o operador muitas vezes parece perdido, sem saber o que enquadrar, ou mesmo escolhendo ângulos estranhos, em closes exagerados com luz estourada. Além disso, a captação de som é ruim, resultando em várias cenas com diálogos difíceis de serem compreendidos em meio a tantos outros sons externos, como na cena em que Anderson conversa com o também lutador brasileiro Lyoto Machida, com uma música berrante ao fundo que abafa quase que completamente a fala dos dois. Ao menos na parte sonora há de se elogiar a escolha de algumas músicas para a trilha, como o rock progressivo do Explosions in the Sky para o final, contrastando o sentimento de euforia da luta com toda aquela condução lenta e carregada da canção So Long, Lonesome.

E como grande fábula que é, até quem nunca acompanhou UFC na vida saberia o resultado da luta entre Anderson Silva e Chael Sonnen. O brasileiro cumpriu direitinho o papel de herói que lhe foi imposto nessa história. E ao utilizar uma fala famosa do Bruce Lee, ser acompanhado até o octógono pelo Steven Seagal e encerrar o filme citando praticamente palavra por palavra um monólogo famoso do Sylvester Stallone em Rocky Balboa, Anderson Silva por um breve momento desfaz a linha que separa os heróis da ficção e da vida real. Como água.