A Pele que Habito
Por Rafael Carvalho
Existem cineastas que já alcançaram certa maturidade em seu ofício, não só ao dominar os recursos cinematográficos com propriedade, mas também solidificando um estilo bastante peculiar. Pedro Almodóvar certamente é um desses (rol em que podem ser incluídos um Manoel de Oliveira ou um Alain Resnais ou um Martin Scorsese, por exemplo), principalmente depois do reconhecimento conquistado pela trinca formada por Carne Trêmula, Tudo Sobre Minha Mãe e Fale com Ela.
Dito isso, é muito bom ver que seu novo trabalho, A Pele que Habito, segue por caminhos um tanto distintos, mesmo que dialogue com o universo temático do diretor aqui e ali. O namoro com o noir, visto em tantos outros filmes, surge com mais força aqui, reforçado por uma trilha sonora pontual e sombria, desbancando inclusive o habitual colorido do cineasta. Não que não exista aqui, mas é menos berrante e kitch. Tem-se, portanto, um Almodóvar mais dark, principalmente na dimensão obsessiva que o protagonista da história tomará para si.
Robert Ledgard (Antonio Banderas) é um cirurgião plástico obcecado pela criação de uma pele sintética ultrarresistente, motivação surgida após um acidente de carro deixar sua esposa com o corpo completamente queimado, vindo a morrer pouco depois. Encontramos Robert mantendo a bela Vera (Elena Anaya) como sua prisioneira domiciliar, em quem realiza, de forma anti-ética e com sucesso, os experimentos de troca de pele. Fica no ar também uma tensão sexual entre os dois, para além dos testes científicos, o que deixa tudo ainda mais suspeito. Mas essa é só a ponta de uma narrativa bem mais complexa e profunda.
O diretor se distancia do melodrama que tanto lhe é caro (marca forte de seus últimos trabalhos, Abraços Partidos e Volver), assim como reserva menos espaço para o humor e o escracho, abraçando uma história de viés misterioso que, enquanto se desdobra, deixa mais dúvidas do que necessariamente respostas para o espectador. O filme nos obriga a um envolvimento atencioso porque em determinados momentos parece seguir por caminhos duvidosos, nos fazendo questionar a direção que o enredo vai tomando.
E talvez aí o filme encontre um entrave. Apesar de manter a atenção a todo instante, a história parece apostar mais no “segredo” que o filme esconde do que necessariamente num clima de apreensão constante. Enquanto isso, vai construindo as peças do quebra-cabeças muitas vezes sem muita emoção ou verdadeiro apreço por elas e pelos seus personagens. É como se houvesse um frieza ali, enquanto ele vai montando seu mosaico. Situações como a invasão da casa pelo filho desequilibrado da governanta (Marisa Paredes em mais uma parceria com o diretor), por exemplo, e a relação que se descobre entre ele e Robert soam forçadas e pouco originais.
Mas o filme vai se beneficiar muito com a sensação de estranheza decorrente do revelar final, filmado sem grandes alardes. Quando as situações que antes pareciam desencontradas passam a convergir para uma resolução redonda e das mais inusitadas, o filme ganha novo ar porque as peças fazem todo o sentido, além da grande força dramática que o desfecho carrega. Mesmo assim, se assemelha ao tipo de bizarrice comumente encontrada nos filmes do diretor.
Nesse sentido, é importante notar a dimensão de crueldade que a obstinação de Robert possui. Ele seria um vilão com motivações passionais, composto com imensa tranquilidade por um Antonio Banderas bastante sóbrio. Afasta-se completamente da figura do cientista louco, embora, no fundo, seja essa sua melhor definição, sem nenhum traço dos tiques que esse tipo de personagem possui (e não deixa de ser curioso pensar que a última vez que ator e diretor trabalharam juntos foi em Áta-me, em que seu personagem sequestra uma mulher, mantendo-a no cárcere até que se apaixone por ele).
Elena Anaya também não fica atrás, tendo de compor uma personagem difícil por conta das transformações (em múltiplos sentidos) pelas quais vai passar. Seu autocontrole deixa muitas dúvidas sobre essa prisioneira que se entrega ao sequestrador. Mas seu melhor momento se encontra nos minutos finais, quando a emotividade do diretor vem à tona, na cena mais desconcertante do filme.
Para quem costuma acusar Almodóvar de sempre filmar mais do mesmo (muito embora quando faz isso, acerta muitas vezes, justamente pelo domínio que possui de sua arte), A Pele que Habito representa um belo desafio em sua carreira, sem que ele precise recusar as marcas de seu próprio cinema. Perde um pouco a mão quando aposta na crueza para montar os acontecimentos em jogo, no puro e simples encaixar de engrenagens que fazem girar a narrativa. Mas ainda assim se sobressai com o belo exemplar de estudo sobre uma mente obsessiva.