A Invenção de Hugo Cabret
Por João Paulo Barreto
Na infância, lembro que um dos primeiros filmes que vi foi E.T. Depois vieram os filmes dos Trapalhões. Com pouco mais de dez anos, assisti a Império do Sol. Esse foi o marco zero de minha cinefilia. Foi a partir desse filme que comecei a criar minha cultura cinematográfica, a assistir a filmes instigado por tudo o que eles teriam a me oferecer e a encarar o cinema como uma forma de arte. “Um lugar onde a mágica acontece”. Hoje eu ouvi essa frase ser proferida por ninguém menos que George Méliès, o ilusionista francês que pode ser considerado o criador do cinema como arte, como uma forma de totalmente inovadora de se contar histórias. E me senti um felizardo pelo amor que nutro pela Sétima Arte.
Sim, foi da própria pessoa de Méliès que escutei essa frase ser dita. Isso aconteceu durante a projeção de uma das mais apaixonantes declarações de amor ao cinema que um diretor poderia construir. A Invenção de Hugo Cabret, novo filme de Martin Scorsese, não tem Ben Kingsley no papel do mágico francês. Ele TEM o próprio Méliès interpretando a si mesmo. Ao ouvir Kingsley conversar com um garoto e dizer, em frente a um cenário de cinema, que aquele é o local onde a mágica acontece, me fez perceber duas coisas: uma é justamente o fato de que a personificação do ilusionista por Sir Ben Kingsley equipara-se ao seu trabalho em Gandhi; a outra reside na constatação plena da importância que o cinema possui na vida de Scorsese e em como somos sortudos por termos esse diretor como alguém disposto a compartilhar seu amor, conhecimento e talento por esse tipo de representação artística.
Hugo pode ser considerado o primeiro filme realmente feito de forma a tornar o 3D uma ferramenta de contribuição para a narrativa e não apenas um artifício visual do longa. Claro, muitos podem afirmar que a mesma intenção e resultado podem ser vistos em Avatar. Isso é um fato. No entanto, o filme James Cameron é calcado em cenas de ação, explosões e em elementos baseados na velocidade que a obra possui, algo que com o 3D é, obviamente, supervalorizado. Em Hugo, Scorsese foi além. O filme utiliza essa tecnologia baseada em elementos apresentados de forma sutil, como, por exemplo, o pêndulo de relógios, suas engrenagens, fumaça e até mesmo o movimento dos atores em cena. Sim, a própria mise en scène foi construída de modo a destacar o 3D. Surpreendente!
Não que os elementos marcantes na filmografia do diretor ítalo-americano não estejam lá. Os travellings na estação de trem de Paris já demonstram a sua assinatura, do mesmo modo que os planos-sequência, como o arrebatador que abre a produção, já nos remetem a diversos momentos da carreira de Scorsese. Além disso, lá está o homem atormentado, se sentindo fora do eixo do mundo, mas que tenta se adaptar a ele de um modo que se perceba bem vindo. A diferença é que, dessa vez, não é um insone e violento taxista, ou um boxeador misógino e ciumento, ou até mesmo Jesus Cristo. Agora, o atormentado é um garotinho órfão, filho de um relojoeiro, e que passa os dias escondido nas estranhas da estação de trem parisiense a dar manutenção nos relógios e a praticar pequenos furtos para sobreviver.
Hugo (Asa Butterfield) tenta reconstruir um boneco autômato encontrado pelo seu pai (Jude Law) e que contém um segredo que poderá mudar sua vida. Nesse intuito, acaba conhecendo o melancólico George (Kingsley), um amargurado comerciante da estação que possui uma trajetória de vida que tenta esquecer por conta das decepções passadas. Será através de George que Scorsese construirá essa brilhante homenagem ao cinema. Através de flashbacks, conheceremos os bastidores das gravações de clássicos do cinema mudo, como O Reino das Fadas, curta de 1903, no qual o próprio Méliès atuou. O modo como Scorsese revelou o segredo das técnicas do precursor francês torna o filme uma verdadeira declaração ao cinema. Truques de montagem como o que mostra como eram feitas as cenas de desaparecimento de personagens ou a forma como o diretor usava uma estufa para gravar as cenas, de modo a permitir o aproveitamento por completo da luz ambiente, demonstram o pioneirismo e a genialidade de Méliès.
A Invenção de Hugo Cabret é uma obra meticulosa, construída de modo minimalista, algo que confirma o status de gênio de Scorsese. Repleto de momentos marcantes, como a belíssima fusão envolvendo a vista aérea de Paris na cena de abertura ou a expressão de certo personagem durante um tocante clamor feito entre lágrimas, o filme cativa o espectador de forma arrebatadora. Além disso, a trilha sonora de Howard Shore figura entre os momentos mais brilhantes de sua carreira. De fato, desde O Senhor dos Anéis que o maestro não apresentava um trabalho tão impecável..
Posso afirmar com toda a segurança e sem medo algum de parecer clichê que, com Hugo, Scorsese adicionou mais uma obra prima ao seu currículo. E como é maravilhosa a sensação de sair do cinema sentindo-se bem, sentindo-se nutrido por uma paixão que apenas verdadeiros gênios como Méliès e Scorsese são capazes de transmitir. Hoje posso lhes dizer que me senti, novamente, como aquele garoto que não existe mais; aquele menino que, aos dez anos, se apaixonou pelo cinema e tenta absorvê-lo e compreendê-lo desde então.