Rafael Saraiva

Preciso abrir esse texto com uma breve confissão: Nunca tive animais de estimação, nem um contato prolongado com qualquer outra espécie. Por isso, nunca consegui compartilhar desse afeto que muitas pessoas tem pelos bichos, e muito menos me emocionar quando essas relações de amizade são retratadas no cinema, por mais litros de lágrimas que consigam arrancar do restante da plateia. Mas nunca encarei isso como impedimento para assistir a um filme, e por isso, resolvi conferir o mais novo trabalho de ninguém menos que Steven Spielberg, Cavalo de Guerra. Infelizmente, mais uma vez me deparei com uma obra milimetricamente construída em seus vários aspectos para emocionar o espectador.

E o primeiro ato do filme é especialmente representativo dessa característica: somos apresentados ao garoto sonhador que estabelece uma conexão empática com um cavalo assim que o vê; seus pais (os bons atores Peter Mullan e Emily Watson) são pessoas íntegras, mas com problemas com dívidas; seu melhor amigo, leal e divertido; e o vilão (David Thewlis, em um papel ingrato), um homem de negócios rico e ambicioso, que quer passar por cima daquela família com seu poderio. Uma seleção de personagens que já vimos à exaustão no cinema, e que inevitavelmente desemboca na clássica história de superação igualmente batida – aqui especialmente simbolizada pela cena do jovem Albert e seu cavalo Joey arando um terreno dito infértil para a colheita (com direito até a plateia para apoiar e festejar o protagonista, enquanto o antagonista saia de cena humilhado).

Felizmente, o longa assume uma postura diferente após o primeiro ato, e se transforma em uma espécie de “O Odisseia” equina, onde Joey atravessa grande parte do front da Primeira Guerra Mundial, inclusive por ambos os lados do conflito. Assim somos apresentados a uma variedade de novos personagens, alguns deles interessantes, como o gentil Capitão Nicholls (Tom Hiddleston) e os irmãos alemães Gunther (David Kross, relevação de O Leitor, lembram?) e Michael. Com eles, Spielberg constrói pequenos arcos narrativos dentro da história principal, onde mesmo com pouco tempo de tela cada um, é possível simpatizar com essas pessoas. Mas é curioso como que, para todos eles, o cavalo se torna um tipo de azar (é só reparar no destino da maioria dos donos “intermediários” de Joey), como se estivesse destinado a ser de Albert – e inevitavelmente, é o que acontece em seu final, ao retomar sua estrutura piegas do inicio.

Mas é impossível não falar das qualidades do filme – e não são poucas. Visualmente ele impressiona, como uma superprodução à moda antiga. Spielberg confere toda a grandiosidade necessária para contar a história, em especial nas batalhas, sempre imponentes. E felizmente não tenta glamouriza-las, colocando a câmera em diversos momentos seguindo os personagens em meio ao caos, com direito a lama, sujeira e fumaça vindo na lente a todo instante (mas claro que por ser um filme “para a família”, possui bem menos violência gráfica do que O Resgate do Soldado Ryan, por exemplo. Mas o diretor consegue contornar isso bem, como na ótima cena da morte de dois personagens, ocultada pela pá de um moinho, ou quando certo personagem encara uma metralhadora, já ciente de seu destino). Além disso, os efeitos especiais são bons, mesmo quando substituem Joey por um modelo tridimensional quando necessário. A fotografia do Janusz Kaminski (que já ganhou dois Oscar anteriormente em parceria com Spielberg, em A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan) salta aos olhos, mergulhando diversas passagens da trama em paletas de cores características, seja no amarelo quase vermelho do nascer do Sol no campo, seja nos tons acinzentados do front, dando um tom quase fabulístico ao longa. Há também uma ótima transição, onde um crochê se transforma em um campo aberto, mas fica tão solitário em meio a tantos fade-outs (e acreditem, existem muitos durante o filme) que quase soa como um exercício gratuito de estilo.

E analisado friamente, Cavalo de Guerra é um filme que fala muito sobre linguagem e compreensão, seja entre homem e animal, seja entre os dois lados inimigos em um conflito. A cena em que um soldado inglês e outro alemão fazem uma trégua para soltar Joey dos arames farpados é simbólica, e pela sua natureza quase que insólita reafirma o tom de fábula já citado acima. Mas Spielberg erra primariamente ao colocar todos falando inglês, mesmo os alemães e franceses. Com um cinema cada vez mais internacional presente nas telas, essa é uma pasteurização cada vez mais desnecessária, que só compromete a veracidade da obra. E quão mais impactante seria a cena dos dois soldados se ajudando se não pudessem entender um ao outro, tendo que se acertar apenas por gestos, por exemplo? As possibilidades eram enormes.

Muito mais eficiente quando se foca na jornada de Joey do que na sua relação de amizade com Albert, Cavalo de Guerra segue à risca a receita de roteiros batidos para encher os olhos da plateia de lágrimas, além de ser um filme com a cara das premiações. E é uma pena que isso acabe chamando tanta atenção, quando ele tem muito mais a oferecer que acaba passando desapercebido.