Pelo fim dos editais para a Cultura
Publicado em 7 de julho de 2025
https://www.correio24horas.com.br/colunistas/artigo/pelo-fim-dos-editais-para-a-cultura-0725
Há algumas semanas, o professor e diretor de teatro Gil Vicente Tavares escreveu artigo, aqui neste jornal, tecendo críticas ao edital promovido pela Fundação Gregório de Mattos (Prefeitura). Logo na sequência, Sérgio Sobreira, também professor e produtor, escreveu texto com alguns comentários em defesa da mesma proposta da FGM. Agradeço aos dois pensadores e me junto ao debate, mas sem me deter ao edital criado pela equipe liderada por Fernando Guerreiro. Busco reflexão sobre a relevância dos editais para a cultura, de uma forma geral. Creio que é chegada a hora de sua substituição por um mecanismo mais prático, objetivo e direto.
Gil Vicente, professor e diretor de teatro, já escreveu, em outras oportunidades, sobre a fragilidade das comissões que são montadas regularmente e seus critérios que mudam a cada novo verão. Resultados pregressos, metas a serem alcançadas, público conquistado, prêmios obtidos, receita atingida…. esses critérios ou não existem ou possuem peso quase irrelevante para as avaliações. Via de regra, as decisões de investimentos à cultura são baseadas em regras subjetivas e em constante mutação. Se há uma determinada pauta no momento, será esse o norte da comissão dos editais. Se há um clamor popular, será esse o ponto a definir novos projetos para a cultura.
Nesse sentido, creio que o novo edital proposto pela Fundação Gregório de Mattos busca sanar parte dessa questão ao priorizar a trajetória dos artistas envolvidos.
Atitude acertada pela equipe da FGM, que entende que a carreira de tantos artistas vem sendo desconsiderada com a chegada de uma nova geração que carrega idéias renovadas e busca espaço a todo custo. Um movimento natural e legítimo… até certo ponto, pois não devemos desconsiderar o esforço e talento de tantas pessoas que, muitas vezes, tiraram leite de pedra em décadas passadas onde não existia dinheiro para a cultura.
É preciso lembrar que na década de 90, por exemplo, praticamente não havia dinheiro para a atividade artística. Não existiam editais. Havia a "política de balcão", ou seja, o produtor/ artista só tinha dinheiro para projetos caso tivesse padrinhos políticos. Muitos artistas construíram suas carreiras iniciando projetos com zero ou pouco recurso. O quadro se agrava se voltarmos aos anos 50 e 60. São os nossos pioneiros que muito já fizeram e precisam ser considerados.
A implantação dos editais, no início dos anos 2000, soou como algo democrático e positivo. Foi um passo valoroso, mas que já esgotou suas possibilidades. Precisamos avançar, agora.
Sérgio Sobreira, em seu artigo, ressalta a necessidade de reforma nas ferramentas de avaliação por parte dos estados e municípios. Sérgio está correto!
Junto-me a ele e acrescento que os editais não devem figurar como única ferramenta pública para o financiamento público da cultura. Não pode ser, nem mesmo, a mais importante delas.
Algo que já existe em alguns países, e que precisa ser observado de perto por todos nós, é a implementação de um FLUXO CONTÍNUO de investimentos que leve em consideração a trajetória e os resultados dos artistas e produtores.
Para que isso aconteça, em primeiro lugar, será necessário estabelecer metas para todas as áreas da cultura, distinguindo fortemente o que se trata de recurso a fundo perdido e uma linha de investimentos retornáveis que precisa existir, de fato. É imprescindível que exista uma real dimensão de mercado para a cultura. A atividade cultural deve se preocupar em gerar receita e renda. É necessário devolver parte do dinheiro investido para que exista autonomia. Para todos nós, é importante que um mercado real seja criado. Fala-se muito em cinema e teatro profissionais, que só existirá com o risco inerente à economia de mercado e audiência que mantenha tais atividades.
Vou seguir por aqui e dar exemplos ligados ao audiovisual, área da qual eu entendo.
Quando o estado financia curta-metragens, por exemplo, sabe-se que não existe perspectiva de retorno financeiro pois não há mercado para o formato. Mas, a produção de curtas é extremamente importante não apenas pela obra em si, mas pela constante formação de novos artistas, produtores e demais trabalhadores do cinema. Contudo, não devemos deixar a atividade "solta", sem metas a serem alcançadas. Quantos curtas vamos realizar nos próximos anos, na Bahia? Quanto dinheiro será investido a fundo perdido? Quais as metas a serem alcançadas?
Festivais de cinema estão separados em categorias (A, B, C…), que levam em consideração não apenas a qualidade de organização e curadoria, mas o tempo e história que possuem. Quantos festivais nível A pretendemos alcançar nos próximos cinco anos? Quantos nacionais e internacionais?
Via de regra, não existem tais metas nos editais atuais. Nem para curta, longa, festivais… Vamos avançar ainda na esteira do curta-metragem.
Vamos supor que um realizador estreante conseguiu dinheiro do estado para financiar um curta e alcançou a meta de ser selecionado para dois festivais nível A, quatro festivais nível B e mais oito nível C, tanto nacionais quanto internacionais. Que o referido curta ganhou prêmios e críticas positivas. Dentro de um fluxo contínuo de investimento, esse realizador já terá garantido um orçamento pré-determinado para um segundo curta-metragem. Portanto, não teríamos um edital propriamente dito, pois os critérios são, em sua maioria, objetivos. O realizador já provou que tem capacidade artística e de produção. Resta confirmar se o novo projeto cabe no valor que para ele será destinado.
Dando continuidade a sua carreira, esse realizador tem sucesso em seus próximos quatro curtas e estará, automaticamente, credenciado a receber investimento de baixo-orçamento para um longa-metragem. Vamos supor um valor de um milhão e meio de reais. O realizador deverá apresentar o seu projeto para que o estado/ prefeitura possa atestar que o que está sendo proposto se encaixa nesse valor.
Tratando de um baixo orçamento, ele terá como meta entrar e ganhar reconhecimento em um bom circuito de festivais, mais uma vez. Ainda não vale cobrar retorno financeiro deste realizador/ produtor. Caso as metas sejam alcançadas e até mesmo superadas, esse cineasta estará credenciado a receber um valor maior e, assim, poderá colocar seu próximo filme em um circuito comercial. A partir de agora estamos falando de mercado. As metas devem ser pensadas em termos de geração de emprego, renda e retorno financeiro. Com a possibilidade de realização de lucros, o artista e produtor devem retornar, obrigatoriamente, um percentual do investimento feito.
Eu dei aqui um exemplo positivo. O que acontece quando um artista/ produtor não consegue alcançar minimamente as metas? Devemos estabelecer um número de tentativas possíveis, mas creio que se não existir retorno em termos de festivais, crítica e público/ renda, o artista deverá deixar de receber dinheiro público e dará chance aos estreantes.
Resultados positivos e negativos devem ser levados em conta, sempre. Hoje, da forma como está, mesmo sem resultados, artistas e produtores irão concorrer com os que alcançaram números expressivos no mesmo pé de igualdade. Prevalecem, quase sempre, nos editais, as bandeiras do momento, como já dito.
O que proponho é a efetivação de um sistema que leve em consideração a carreira e os resultados de cada um, superando, assim, as ideias dominantes do momento que não são, necessariamente, sinônimos de sucesso junto a um amplo público. É preciso dar liberdade de pensamento e reconhecer a competência dos realizadores.
É preciso, também, que exista transparência quanto ao investimento e aos resultados obtidos de qualquer projeto cultural. O estado e prefeitura precisam acompanhar o que é aprovado. Os realizadores e produtores precisam ser cobrados por resultados. Hoje, a cobrança é gigantesca em termos de prestação de contas, mas nunca quanto às metas, pois elas não existem.
Há, ainda, um novo ingrediente nesse tempero dos editais que precisa ser levado em conta: a Inteligência Artificial. Roteiristas e produtores estão se valendo cada vez mais de aplicativos para encontrar soluções e mesmo para a criação de cenas inteiras de roteiros.
Se, por um lado, as bandeiras da moda dominam os resultados dos editais, por outro teremos cada vez mais roteiros escritos por aplicativos. Assim, o risco de que pessoas com pouca ou sem nenhuma vocação para o cinema passarão a ganhar editais e prêmios que são muito importantes para alimentar toda uma cadeia produtiva.
Mais do que nunca, é preciso que o histórico e real capacidade dos artistas sejam considerados para podermos avaliar projetos.
Um último detalhe importante: não devemos apenas pensar na produção sem levar em conta QUEM vai assistir aos filmes. Existem muitos filmes brasileiros sendo produzidos com uma baixa ocupação das salas de cinema para a nossa cinematografia. É por demais importante pensar, seriamente, na formação de público, pois não há sentido em realizar para poucos ou mesmo para ninguém.
Eu não descarto a existência de editais pontuais para sanear determinadas faltas identificadas. Mas, necessitamos de um fluxo contínuo que fortaleça o que vem funcionando bem dentro de exigências a serem cumpridas.
Precisamos valorizar, na cultura, o histórico dos artistas e das produtoras. Devemos sempre promover a renovação com a entrada de estreantes, mas jamais deixar de levar em consideração as metas e objetivos necessários para finalmente construirmos uma indústria cultural sólida. É preciso pensar na produção levando em conta que cada filme possui um lugar e um público a ser alcançado.
Não é possível que a produção no Brasil receba tanto dinheiro e que os demais setores fiquem a ver navios. Festivais, mostras, cinematecas e pequenas salas de cinema continuam sem uma política nacional.
Não há escassez de recursos. Existem gestores antenados e comprometidos com a Cultura tanto na gestão federal, como estadual e municipal.
Existem bons produtores, diretores, distribuidores, exibidores… tudo está posto. O que falta, mesmo, é um sistema eficaz que regule toda a atividade cultural de forma a equilibrar produção com os demais setores.
É necessário o aprimoramento dos mecanismos de financiamento à cultura.
Recomendo a leitura do texto de Gabriel Portela.
Cláudio Marques é exibidor, cineasta e idealizador do Cine Glauber Rocha. @caumarques