
Na companhia de Rohmer
Por Adolfo Gomes
Programador da Sala Walter da Silveira
Eric Rohmer é uma criação do seu próprio autor. Não existe fora do cinema, portanto, como seus filmes, nunca sentiu os efeitos do tempo, nem as agruras da decadência e da extinção. De Jean-Marie Maurice Schérer, seu nome de batismo, não sabemos nada além de pistas: teria nascido em 21 de março de 1921 ou em 4 de abril de 1923? Era casado? Há quem diga que tinha dois filhos, no entanto, ninguém nunca os viu publicamente…
Rohmer nasceu, de fato, com a escrita, o pseudônimo com o qual assinava seus primeiros textos sobre cinema, nas célebres revistas “Objectif 49”, “La Gazette du Cinéma” e , finalmente, “Cahiers du Cinéma”. Como redator-chefe desta última, defendia que “um estilo puramente cinematográfico surgia da estreita união entre palavra e imagem”.
Quando tornou-se cineasta, consagrou sua obra a “encenar a palavra e seu poder”, evidência de algo mágico, às vezes inaudito, que só a imagem poderia provar. Em termos práticos: perscrutar através dos diálogos os desejos, as cirandas afetivas e os subentendidos, com os jogos amorosos ou políticos daí resultantes. O escorregadio e volúvel que há no humano. Da mise-en-scène, a transparência da natureza, a moral que não se deixa enganar pelas aparências ou duplos sentidos, o respeito à luz e as condições naturais, o que levaria Rohmer a confessar: “meus filmes são feitos de acordo com a metereologia, são escravos do tempo, na medida que não uso truques”.
Ao longo dos ciclos – “Contos Morais”; “Comédias e Provérbios” e “Contos das Estações” – ou dos chamados filmes avulsos – “Perceval le Gallois”, “A Marquesa D’O”, “Agente Triplo”, “Os Amores de Astrea e de Celadon”, entre outros – passando pela experiência na televisão – “Louis Lumière” e o episódio dedicado a Carl Dreyer na série “Cinéastes de Notre Temps” notadamente – erigiu um espaço privilegiado da busca e, sobretudo, manifestação da beleza.
“Entre todas as artes, o cinema é aquela que pode capturar melhor a verdade e a beleza do mundo, a verdade e a beleza das coisas”, professava, com o mesmo rigor que protegia a si mesmo das veleidades do meio cinematográfico, recusando-se a participar de festivais e chegando a usar bigodes postiços para preservar a intimidade.
Não lhe interessava o culto do autor, apenas a obra. E tal mistério sobre sua vida particular lhe permitia, por sua vez, viver, através dos seus filmes, de maneira incondicional. Ao seu redor, à medida que desenvolvia sua filmografia, ia formando uma família. Atores, produtores e técnicos, cada vez mais reduzidos e assumindo várias funções, como no caso do elenco de “Pauline na Praia”, que se encarregara da decoração dos cenários e das roupas utilizadas no filme.
Dessa ambiência extraía o vigor, a juventude e o frescor do olhar que conservara faustinianamente no decorrer das décadas. Das poucas imagens que lhe escaparam dos sets de filmagens, há algumas surpreendentes. Rohmer dançando entre as jovens em flor, habitantes de seus filmes, ou mesmo correndo na praia, como se para voar faltasse-lhe apenas evocar uma de suas palavras encantadas.
Entre os “jovens turcos” que tomaram de assalto o cinema francês do final da década de 1950 e desencadearam a “Nouvelle Vague”, Rohmer era o decano, “a autoridade, o mais profundo”, nas palavras de Godard. Fez da arte um modo de vida e através dela permanece, incólume às intempéries do percurso, à mesquinhez e aos modismos. E com a segurança e placidez de quem mira o essencial.
Em 2007, ao lançar seu derradeiro trabalho, justamente “Os Amores de Astrea e de Celadon”, ambientado na Gália do século V, Rohmer anunciava estar na altura da reforma. Da nossa, certamente. Pelo caminho que todos nós ainda temos ao lado de seus filmes.