Por Rafael Carvalho

É fato que Jogo de Cena (2007) é um marco na carreira do documentarista Eduardo Coutinho, um de nossos grandes cineasta em atividade, e um dos grandes filmes nacionais da década passada. O estilo peculiar do diretor consiste, em especial, na comunhão que consegue estabelecer com seus entrevistados, retirando deles muito de intimidade, como um desnudamento do indivíduo frente à câmera. E ele parece ser um dos poucos documentaristas em exercício hoje que fazem isso com extrema competência, respeito e simplicidade.

Em Jogo de Cena, para além da relação entre o que é real e encenação, havia uma simplicidade enorme em como o diretor travava diálogo direto com a pessoa sentada à sua frente. Poucos planos, algumas variações de ângulos, tudo para conferir importância às histórias que estavam sendo narradas e exploradas, nada mais.

As Canções seria, portanto, a continuidade desse refinamento estético, junto com a habitual habilidade de Coutinho em fazer com que seus entrevistados entreguem algo íntimo de si nas falas, só que agora acrescido de músicas. O cineasta pede que seus entrevistados cantem (no gogó mesmo, sem nenhum tipo de artifício) uma canção que marcou a vida deles, e digam por que motivo. Simples assim. E está armado mais um jogo de encenação e entrega.

No que parece ser uma sala de teatro, a cadeira do entrevistado permanece frente a uma cortina, como num palco. De frente para ele (e para a câmera), fica Coutinho conduzindo as entrevistas, mas fora do quadro, sem nunca aparecer em cena. Mas se em outros filmes sua presença é sempre sentida (ouvimos sua voz fazendo as perguntas e intervenções, outras vezes aparecendo mesmo em cena), aqui é possível sentir um Coutinho um pouco mais conectado com seus entrevistados ou mais “participativo”.

Isso porque é possível notar em algum momento que ele canta uma das canções junto com um dos entrevistados, da mesma forma que em outro, ele solta uma interjeição de entusiasmo quando um deles relembra um certo cantor de outrora. É esse tipo de comunhão que faz quebrar a hierarquia entrevistador/entrevistado, dotando o filme de um imenso coração, e, assim, dialogar tão bem como o espectador. Da mesma forma que, mais uma vez, Coutinho nos parece convidar para uma conversa entre amigos.

Mas mesmo com todas essas pequenas particularidades e potencialidades, o filme não está livre de limitações. Há de pesar que todos os 18 entrevistados (alguns poucos deles aparecem somente cantando) que relembram momentos marcantes de suas vidas nem sempre têm histórias tão interessantes assim para expor. A maioria delas tratam de amores perdidos ou não correspondidos, dotando o filme de uma aura de dor-de-cotovelo que encontra nas canções escolhidas uma bela forma de expurgar as emoções e desilusões vividas (mas nunca esquecê-las, não faria sentido registrá-las num filme).

De qualquer forma, as histórias vencem pela emotividade imanente e, claro, pelo indiscutível fator de importância que elas têm para cada um que aceitou narrá-las diante das câmeras. Como não se comover com um homem que cai no choro de repente ao lembrar a música que sua mãe cantava quanto ele era ainda um menino? Ou com a música composta por um antigo amor que uma das entrevistadas lembra e ainda hoje guarda a letra escrita a mão pelo homem que ela não vê mais, mas que permanece como sua grande paixão? Assim, as histórias têm mais potência por aquilo que guardam e pelas sensações que suscitam do que, necessariamente, por serem de grande interesse ou mesmo instigantes.

Amarrado por uma montagem sutil e inteligente (como já acontecia com uma competência ímpar em Jogo de Cena) que tenta encontrar paralelo entre as histórias, ou mesmo equilibrando-as, As Canções reaviva o interesse contínuo que Coutinho nos faz ter pela próxima história, pela próxima aventura dos sentimentos alheios. Faz jus a cada lágrima derramada, do espectador e de seus entrevistados, a cada atitude exposta, porque não parece haver julgamentos quanto aos atos de cada um. O que existem são histórias de vida, originais ou não, mas ainda assim cativantes.